sábado, 17 de outubro de 2009

6 - Livro: Fascismo de Esquerda

Pessoal, uma dica de leitura: Fascismo de Esquerda, de Jonah Goldberg. Comprei a edição americana há um mês na Livraria Cultura por 35,00 reais (a edição em português custa quase 60,00). O título original é Liberal Fascism (editora Penguin). O comentário abaixo sobre o livro é de Nelson Archer e saiu na Veja (21 de outubro de 2009).

"Fascistas são vocês"

O polemista conservador americano Jonah Goldberg cansou de ser insultado pela esquerda de seu país – e devolve a provocação em um livro do qual todos os ídolos democratas saem chamuscados

O que é (ou foi) o fascismo? Pode-se facilmente identificar quais países, regimes e movimentos, entre as duas guerras mundiais, eram fascistas, com a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler à frente. E sabe-se que, em linhas gerais, todos compartilhavam nacionalismo, anticomunismo, autoritarismo, o culto ao líder, a mobilização das massas, um apego à violência, a demonização de inimigos reais ou imaginários. Aqui termina o acordo entre eruditos, começam as interpretações, e se entra numa esfera distinta, na qual "fascista" deixou há muito de ser uma palavra para se converter em palavrão. Poucos se abstêm de usá-lo para dizer que discordam ou não gostam de algo ou de alguém – mas, como açoite verbal, o termo pertence sobretudo à esquerda. Fascismo de Esquerda (tradução de Maria Lucia de Oliveira; Record; 546 páginas; 59,90 reais), do ensaísta americano Jonah Goldberg, uma das jovens estrelas que se agrupam em torno da revista National Review – veículo do vilanizado neoconservadorismo americano –, retruca à esquerda dos Estados Unidos, que vilipendia os conservadores acusando-os de fascistas. Goldberg devolve a acusação, tentando provar, menos por argumentação que por acúmulo de convergências e coincidências factuais, que, ao fim e ao cabo, "fascistas são vocês".

Por alentada que seja, a obra não é nem um apanhado teórico, nem uma investigação histórica. Trata-se antes de uma polêmica popular, o que torna relevante seu contexto. Ela é uma intervenção no longo e aguerrido debate americano entre liberais e conservadores, orientações políticas que, entre nós, equivaleriam, grosso modo, a centro-esquerda e centro-direita. Livre para rotular, Goldberg segue a lógica do insulto até cair, amiúde, no ridículo. Assim, que a Revolução Francesa tenha sido violenta e homicida, não basta, como quer o autor, para caracterizá-la anacronicamente como pecado original e raiz do fascismo. No entanto, se o polemista neoconservador não consegue (como os liberais ou esquerdistas tampouco) aproximar seus adversários decisivamente dos antigos camisas-negras ou estabelecer entre ambos um verdadeiro vínculo genético, nem por isso deixa de arrolar semelhanças e parentescos no mínimo intrigantes e, no limite, desagradáveis.

Não é mistério que, em seus extremos nazista e stalinista, direita e esquerda se assemelhavam mais entre si do que a qualquer forma de democracia civilizada. Goldberg, contudo, ao explorar cerca de um século de "progressivismo" e liberalismo americanos, revela que estes nem sempre estiveram do lado do bem. Do nacionalismo chauvinista ao expansionismo imperial, da eugenia ao racismo, da xenofobia ao antissemitismo, quase tudo o que se atribui à direita foi, em algum momento, testado ou adotado pela esquerda americana, cujos heróis e paladinos saem, se não desmoralizados, decerto chamuscados. Dos quatro grandes presidentes democratas, Woodrow Wilson (que interveio na I Guerra e idealizou a Liga das Nações), Franklin Roosevelt (pai do New Deal e pilar da aliança que, na guerra seguinte, derrotou o Eixo), John Kennedy e Lyndon Johnson (cujas administrações acabaram com a segregação racial), nenhum emerge incólume de Fascismo de Esquerda. Embora seus governos não tenham sido fascistas, Goldberg mostra que eles comportavam elementos do fascismo.

O New Deal rooseveltiano, economicamente menos eficaz do que a lenda declara, envolveu uma mobilização de cima para baixo da população que, encorajada pela propaganda de slogans marciais nos novos meios de comunicação de massa (rádio e cinema), apresentava semelhanças preocupantes com o que ocorria então na Itália, Alemanha e União Soviética. Kennedy, por seu turno, valeu-se pioneiramente da televisão para projetar uma imagem quase monárquica de sua personalidade e gestão. Seu assassinato contribuiu para mitificá-lo como mártir da causa liberal. Que os ídolos republicanos sejam poupados por Goldberg de tão severo exame é da natureza da polêmica. Há nela, porém, informações úteis sobre a mais estereotipada das nações, os Estados Unidos. Publicado antes da eleição de Barack Obama, o livro ajuda a acompanhar com ceticismo a ascensão, atípica em democracias maduras e pragmáticas, de um dirigente messiânico e, de antemão, anunciado como redentor do passado, reconciliador das raças, salvador da pátria. Embora se possa e, em muitas questões, se deva tomar a obra com boas pitadas de sal, não há como ignorar a pertinência de suas melhores provocações.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

7 - Livro: Uma Gota de Sangue

Pessoal, mais uma dica de leitura: Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli. O comentário sobre o livro e seu conteúdo (conceito de raça e racismo) é de Diogo Schelp e saiu na Veja (2 de setembro de 2009).

Queremos dividir o Brasil?

"Não", é a resposta que resulta da leitura de Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli, um livro ambicioso que investiga as origens ideológicas das cotas raciais

"Cada homem é uma raça." A frase, título de um livro do escritor moçambicano Mia Couto, sintetiza a ideia de que cada indivíduo tem sua história, seu repertório cultural, seus desejos, suas preferências pessoais e, é claro, uma aparência física própria que, no conjunto, fazem dele um ser único. Rótulos raciais são, portanto, arbitrários e injustos. Mia Couto, com sua concepção universalista da humanidade, é citado algumas vezes em Uma Gota de Sangue – História do Pensamento Racial (Contexto; 400 páginas; 49,90 reais), do sociólogo paulistano Demétrio Magnoli, recém-chegado às livrarias. Trata-se de uma dessas obras ambiciosas, raras no Brasil, que partem de um esforço de pesquisa histórica monumental para elucidar um tema da atualidade. Magnoli estava intrigado com o avanço das cotas para negros no Brasil e resolveu investigar a raiz dessas medidas afirmativas. O resultado é uma análise meticulosa da evolução do conceito racial no mundo. Descobre-se em Uma Gota de Sangue que as atuais políticas de cotas derivam dos mesmos pressupostos clássicos sobre raça que embasaram, num passado não tão distante, a segregação oficial de negros e outros grupos. A diferença é que, agora, esse velho pensamento assume o nome de multiculturalismo – a ideia de que uma nação é uma colcha de retalhos de etnias que formam um conjunto, mas não se misturam. É o racismo com nova pele.

Em todos os povos ou períodos da história, a sensação de pertencimento a uma comunidade sempre foi construída com base nas diferenças em relação aos que estão de fora, "os outros". Muitas tribos indígenas brasileiras, por exemplo, chamam a si próprias de "homens" ou "gente" e denominam pejorativamente integrantes de outros grupamentos – esses são "seres inferiores" ou "narizes chatos". O filósofo grego Aristóteles considerava a "raça helênica" superior aos outros povos. Mas até o Iluminismo, no século XVIII, a humanidade não recorreu a teses raciais para justificar a escravidão – tratava-se de uma decorrência natural de conquistas militares. A postulação de que todos os homens nascem livres e iguais criou, porém, uma reação: a fim de embasar o domínio de povos europeus e seus descendentes sobre as populações colonizadas ou escravizadas, começou-se a elaborar uma divisão sistemática de raças, com pretensões científicas. No século XIX, esse pensamento atingiu seu ápice, com a apropriação das teses darwinistas de seleção natural. Os teóricos do racismo científico trataram de estabelecer hierarquias entre os grupos humanos com base em fundamentos biológicos. Com a gradual abolição da escravidão, o racismo científico foi usado para justificar o imperialismo ocidental na África e na Ásia.

Magnoli descreve como duas visões de mundo opostas estiveram em constante tensão ao longo da história mundial recente. A primeira crê numa espécie humana dividida em raças que se distinguem por ancestralidades diferentes, expressas em traços físicos e culturais. Os arautos dessa ideia podem ser chamados, genericamente, de racialistas. A segunda visão, antirracialista, nega a separação da humanidade em categorias inventadas e acredita no princípio da igualdade entre as pessoas. Representam a linha de pensamento antirracialista personalidades como o líder sul-africano Nelson Mandela e os americanos Frederick Douglas, abolicionista do século XIX, e Martin Luther King, líder do movimento em defesa dos direitos civis. Entre os racialistas, figuram o presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, o ditador alemão Adolf Hitler e o ativista negro americano Malcolm X. O exemplo do regime de Hitler na Alemanha não aparece no livro para tentar provar a tese de que todo pensamento racialista leva ao genocídio, o que obviamente não é verdade, mas para demonstrar o extremo a que se pode chegar quando o estado impõe critérios de raça. A crença de Theodore Roosevelt e outros governantes na supremacia dos brancos sobre os negros não levou a uma política de extermínio, como ocorreu na Alemanha. Para Magnoli, a explicação está nas diferenças fundamentais entre o racismo nazista e aquele predominante em outros países. A principal delas é que, na Alemanha, o racismo combinou-se a um nacionalismo extremado e ao ódio obsessivo em relação aos judeus. Esse contexto levou à busca pela "solução final" – a expulsão em massa seguida da eliminação física dos judeus.

Em sua origem, a tese da purificação racial adotada pelos nazistas foi influenciada pelo movimento eugenista americano, que teve seu auge nas primeiras décadas do século XX. Os eugenistas defendiam o melhoramento genético da população por meio de políticas que impedissem indivíduos considerados inferiores de se reproduzir. Tais medidas, por sua vez, só podiam ser tomadas com a classificação sistemática da população segundo critérios hereditários, entre os quais a raça. Atualmente, com o conhecimento que se tem do DNA humano, a tese de que a humanidade pode ser dividida em raças foi relegada ao ridículo. "O ser humano tem 25.000 genes, dos quais não mais de trinta definem a cor da pele e dos olhos, o formato do rosto, o tamanho do nariz e a textura do cabelo, entre outras características morfológicas", explica o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. Ou seja, na imensidão do genoma humano, os aspectos físicos geralmente usados para classificar as raças não representam nada. Do ponto de vista genético, pode haver mais diferenças entre dois africanos do que entre um deles e um europeu nórdico.

O fato de a ciência concluir que as raças não existem como conceito biológico cria uma dificuldade para os defensores da discriminação reversa (o outro nome para as cotas): inviabiliza a tentativa de usar critérios objetivos para decidir quem pode ou não ser beneficiário de privilégios no vestibular, no mercado de trabalho ou em licitações públicas. Essa dificuldade, aliás, sempre existiu nos países que legislaram com base em raça, mesmo quando esse conceito ainda era considerado uma verdade científica. Nos Estados Unidos, por exemplo, criou-se a regra da gota única de sangue – daí o título do livro de Magnoli –, segundo a qual qualquer indivíduo era considerado negro se tivesse um antepassado de origem africana, por mais longínquo que fosse. Em muitos estados americanos, esse foi o critério para as leis segregacionistas que proibiam, entre outras coisas, que brancos e negros casassem entre si, frequentassem a escola juntos ou até mesmo se servissem do mesmo bebedouro. O sistema americano de classificação de raças sempre omitiu a categoria "mestiços", como se fosse possível existir algum grau de pureza dentro de grupos populacionais. A rotulação oficial nos Estados Unidos é até hoje tão arbitrária que divide os cidadãos segundo critérios de cor de pele (brancos e negros), linguísticos (hispânicos) e geográficos (asiáticos). Durante o infame regime do apartheid na África do Sul, que fez dos não brancos cidadãos de segunda classe até 1994, os funcionários do estado passavam um pente ou lápis no cabelo das pessoas para, dependendo do grau de crespidão, classificá-las como negras ou coloured (mestiças). O método criava situações absurdas como a de membros da mesma família recebendo rótulos distintos.

Uma Gota de Sangue alerta para o que ocorre quando um estado se mete a catalogar a população segundo critérios raciais com o objetivo de, a partir deles, elaborar políticas públicas: pouco a pouco, os próprios cidadãos passam a acreditar naquela divisão e se veem obrigados a defender interesses de gueto. Isso cria conflitos políticos e rancor, inclusive nas situações em que as leis tentam beneficiar um grupo antes segregado. É o caso da Índia, país com o maior programa de cotas do mundo. O complexo sistema indiano de castas, tornado oficial pelo imperialismo inglês no século XIX, levou a que o governo daquele país, na década de 50, concedesse privilégios ao grupo dos intocáveis, ou dalits, e a "outras classes retardatárias" – expressão contida no texto constitucional do país. Uma forma de tentar compensá-los das injustiças sofridas no passado. O resultado é que eles passaram a ser invejados. Em 2008, os membros da etnia gujar, do norte da Índia, entraram em choque com a polícia, em protestos que mataram quatro dezenas de pessoas, para pedir o próprio rebaixamento no sistema de castas. Sua reivindicação: também serem considerados inferiores o suficiente para ganhar cotas no serviço público e em universidades. Conseguiram.

No livro de Magnoli, emerge como um desvio estranho a tentativa de instituir uma classificação oficial de raças no Brasil, país cuja identidade nacional foi construída sobre a ideia da mestiçagem. Não se trata de mito: análises genéticas da população demonstram que o DNA de um brasileiro tem, em média, proporções iguais de heranças maternas de origem europeia, africana e ameríndia. Magnoli argumenta que é exatamente essa realidade mestiça que os defensores das ações afirmativas querem destruir, ao tentar somar todos os que se consideram "pardos" à categoria de "negros". Para os ativistas da negritude, a identidade racial é, na verdade, questão ideológica. Isso explica por que uma das principais perguntas feitas aos candidatos às cotas no Brasil é se já se sentiram discriminados. Resposta correta para conseguir a vaga: sim. A baiana Sabynne Christina Silva Regis preferiu não mentir e, em entrevista de seleção do Itamaraty para uma bolsa de estudos para "afrodescendentes", disse nunca ter sido vítima de preconceito racial. Ela está convicta de que isso lhe custou a vaga. Que uma pessoa se considere "parda" não basta aos racialistas brasileiros. "O que se quer é açular a luta de classes – e, nesse contexto, a mestiçagem é incômoda porque elimina a polarização política com base em raça", diz Leão Alves, secretário-geral da ONG Nação Mestiça, com sede em Manaus.

A ideia de que existem raças é um anacronismo que não condiz com a tradição brasileira e com as mudanças que vêm ocorrendo no mundo civilizado. Barack Obama, presidente do país que inventou a regra da gota única de sangue, define-se não como negro, mas como mestiço. E não deixa de ser curioso que, se fosse brasileiro, isso talvez o impedisse de ganhar uma bolsa no Itamaraty. O filósofo Kwame Anthony Appiah, especialista em estudos afro-americanos da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, colocou a questão nos seguintes termos, em entrevista a VEJA: "O estado brasileiro pode não ter ajudado os descendentes dos escravos a sair da pobreza, mas pelo menos jamais os discriminou ativamente, como ocorreu nos Estados Unidos. Isso faz uma grande diferença. Adotar políticas raciais, agora, significaria criar no Brasil uma minoria com privilégios. Em democracias, a existência de minorias com tratamento especial quase sempre resulta em encrenca. A pergunta que os brasileiros deveriam se fazer é: isso vale a pena?". Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli, contribui para que se responda: não, não e não.

Entrevista com Demétrio Magnoli

"Esse caminho conduzirá a uma carteira de identidade racial"

O sociólogo Demétrio Magnoli, autor de Uma Gota de Sangue, conversou com VEJA

O senhor escreveu, certa vez, que ficou incomodado ao deparar com o item "raça" no formulário de matrícula da escola de sua filha. Por quê?
Porque esse é o primeiro documento público no Brasil que compulsoriamente associa as pessoas nominalmente a uma raça. É um documento diferente das pesquisas anônimas do censo demográfico. No caso da matrícula escolar, ao se associar um nome a uma raça, repete-se uma prática fundamental das políticas raciais no mundo inteiro, desde o século XIX. Não vejo nenhum dilema político em que as pessoas, na esfera privada, imaginem participar de uma raça. É um direito de cada um criar identidades próprias. O problema é quando o estado cria e impõe um rótulo às pessoas. No caso das matrículas, isso foi feito através de uma norma do Ministério da Educação (MEC), válida para escolas públicas e privadas. Os pais devem declarar a "raça" de seus filhos. Hoje, todos os formulários de saúde e educação no país têm esse item. O Brasil está oficializando as identidades raciais.

Qual é o perigo?
A função desse conjunto de documentos é impingir aos cidadãos uma marca racial da qual não poderão fugir e que depois terá efeitos práticos em sua vida, no vestibular ou no mercado de trabalho. Estamos trilhando um caminho que conduzirá a uma carteira de identidade racial.

Quem ganha com isso?
Em todos os lugares em que foi aplicado esse tipo de medida, formaram-se elites políticas sustentadas sobre bases raciais. Seu interesse é ganhar influência, votos e audiência social. No Brasil, os promotores dessas políticas imaginam que o racismo brasileiro leva as pessoas a "negar a sua verdadeira raça". Para eles, incentivos oficiais, vagas em universidades e cotas no mercado de trabalho vão ajudar os mestiços a "assumir a sua negritude" – frase que se ouve a toda hora. Pretende-se com isso criar uma larga base social para que os promotores das políticas raciais se ergam como lideranças políticas. Eles querem criar um racismo de massas, algo que não existe no Brasil. Há, sim, um racismo difuso, mas não um ódio racial de massas.

Por que essa agenda foi adotada pelo Partido dos Trabalhadores?
Porque o partido mantém relações com ONGs que promovem tais políticas, muitas por influência de entidades filantrópicas americanas. Como não têm apoio popular, as ONGs precisam se atrelar a um partido para ganhar representatividade e exercer pressão sobre o estado. Embora hoje o PT seja a principal agremiação a conduzir essa bandeira, vale lembrar que as políticas raciais começaram com o PSDB, durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso.

O que é avaliado de verdade na hora de conceder cotas?
No estado racial, as pessoas têm de demonstrar uma identidade e assumi-la. Os desviantes são aqueles que se recusam a fazê-lo. Como não existe ninguém "verdadeiramente negro", assim como não existe "verdadeiramente branco", o que se tenta avaliar é, no fundo, a ideologia. Entre pessoas igualmente pardas, ganha a vaga aquela que se diz vítima de discriminação. Essa resposta é associada a uma ideologia da negritude que serve de critério para as comissões universitárias decidirem sobre a distribuição de cotas. É quase o mesmo que beneficiar no vestibular os alunos que estão de acordo com as ideias de determinado partido.

A criação de um racismo de massas é um caminho sem volta?
Volta sempre existe, mas é preciso saber a que custo. Em Ruanda, pagou-se o preço de um genocídio. Posteriormente, o estado ruandês decidiu proibir a classificação racial da população. Se o Brasil insistir nas políticas raciais e se elas se tornarem enraizadas, coisa que ainda não ocorreu, a sociedade vai pagar um preço alto, impossível de prever.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

8 - Para que serve um tribunal superior?

Comentando as discussões no STF sobre a possibilidade de extradição do italiano Cesare Battisti, o jornalista Reinaldo Azevedo escreveu um interessante texto sobre a importância do tribunal superior na democracia:

É natural que questões que chegam à suprema corte de um país dividam mesmo opiniões. De fato, é saudável e útil para a democracia que ministros de um tribunal superior tenham divergências tão evidentes como as que vimos no dia de ontem, no caso Cesare Battisti. Se as leis fossem suficientes para eliminar, sozinhas, todos os detalhe e sinuosidades da realidade, juízes seriam dispensáveis: uma máquina resolveria o problema. Assim, pode-se ser douto e contribuir para a democracia votando-se de um jeito ou de outro. Se a questão foi parar no STF, é porque outras pessoas, em outros estágios, sustentaram divergências. É do jogo.
Um dia, num determinado caso, apoiamos a tese de um grupo de ministros; muda o assunto e pronto! Lá estamos perfilados com outro. Em qualquer dos casos, esperamos argumentação sólida e posição maiúscula. Um bom argumento contrário àquilo que a gente pensa, por exemplo, representa uma chance formidável de aprendizado; é preciso que sejamos confrontados o tempo todo com as nossas convicções e crenças — e suas conseqüências.
Assim, pouco importa se A, B e C votaram ou não de acordo com as nossas escolhas. O que interessa ao país e ao direito é que os argumentos sejam bons.


O texto completo está em http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/ (“Battisti, o STF e o mal que a arrogância faz à coluna vertebral”)

sábado, 22 de agosto de 2009

9 - Livro: A Ascensão do Dinheiro

Pessoal, uma dica de livro: A Ascensão do Dinheiro, de Niall Ferguson, um dos meus historiadores preferidos. Quem comenta é Benedito Sverberi na Veja (26 de agosto 2009)

Dinheiro também é cultura

Um livro demonstra que a inovação financeira sempre foi um fator central no avanço da civilização – e devolveà economia sua dimensão de aventura intelectual

Em novembro do ano passado, quando os mercados financeiros mundiais estavam mergulhados no pânico absoluto, a rainha Elizabeth da Inglaterra visitou a London School of Economics para inaugurar um novo prédio. Na ocasião, aproveitou para perguntar aos professores da tradicional escola de economia o motivo da irrupção de uma das mais profundas crises econômicas da história. "Mas como ninguém percebeu o que estava acontecendo?", questionou a rainha, que é famosa por sempre manter a fleuma e evitar ao máximo emitir opiniões sobre qualquer assunto. "Terrível." A rainha, é óbvio, não esteve sozinha ao pôr em dúvida o tirocínio dos economistas. Desde a eclosão da crise, eles e seus modelos teóricos caíram em desgraça. As ferramentas financeiras desenvolvidas nos últimos cinquenta anos foram classificadas de inúteis, nas críticas mais amenas, ou de perniciosas, nas mais acerbas. Também voltou com força a ideia de que as bolsas não são mais do que cassinos vulgares, nos quais espertalhões fazem fortuna à custa de inocentes. Escrito por um súdito da rainha, o historiador escocês Niall Ferguson, A Ascensão do Dinheiro (tradução de Cordelia Magalhães; Planeta; 424 páginas; 49,90 reais) ajuda a combater esse espírito. Primeiro, ao demonstrar que a inovação financeira sempre foi um fator central no avanço das sociedades – ou mesmo das civilizações. Em segundo lugar, por conferir à reflexão econômica a sua devida dimensão de aventura intelectual.

"Atrás de cada fenômeno histórico grandioso existe um segredo financeiro", afirma Ferguson. A Ascensão do Dinheiro traça a história das finanças desde os seus primórdios, na Mesopotâmia. E essa história, diz Ferguson, não deve ser vista apenas como um pano de fundo para os grandes acontecimentos da cultura e da política. Todos os fios estão entretecidos. Na transição dos séculos XIV e XV, por exemplo, o florescimento dos negócios bancários na Itália foi condição indispensável para que a Renascença tivesse seus esplendores. Da mesma forma, a criação das finanças corporativas foi alicerce para o império britânico, e a expansão da indústria de seguros e do crédito ao consumidor, um pressuposto da prosperidade americana no século XX. Ferguson, obviamente, não deixa de registrar os momentos de ruptura. Seria uma das "verdades perenes" da história financeira o fato de que, "mais cedo ou mais tarde, as bolhas sempre explodem". No balanço geral da história, contudo, os ganhos sempre se sobrepõem às perdas. Ferguson rejeita peremptoriamente a tese de que a pobreza decorre da exploração de homens simples por financistas predatórios. "A pobreza", diz ele, "tem muito mais a ver com a falta de instituições financeiras e de bancos do que com sua presença."

O livro de Ferguson também é valioso por apontar muitos dos personagens que, ao longo dos séculos, foram responsáveis pelas grandes inovações no mundo das finanças. São figuras como o matemático italiano Leonardo de Pisa, ou Fibonacci, responsável pela introdução do sistema decimal na Europa da Idade Média, ou o barão Nathan de Rothschild, um dos fundadores da dinastia de financistas que dominou o sistema bancário europeu no século XIX e aperfeiçoou a emissão de títulos de dívidas de países. Aparecem, por fim, alguns dos pais do pensamento financeiro contemporâneo, calcado na matemática e que deu base para o extraordinário crescimento daquilo que Ferguson chama de "Planeta Finanças", com sua miríade de títulos e derivativos. São acadêmicos ainda vivos e atuantes, como Harry Markowitz, pioneiro no estudo de diversificação de carteiras de investimentos, e Myron Scholes, que, junto com Fischer Black (já falecido), desenvolveu a fórmula de Black-Scholes, uma equação matemática utilizada para dar preço a ativos financeiros. Eles são os principais alvos daqueles que, na esteira da crise, falam no desmoronamento de uma parte considerável do edifício teórico da economia capitalista.

Ferguson ajuda a separar as críticas pertinentes ao pensamento financeiro moderno daquelas que são apenas mistificação ideológica. Lança luz, principalmente, sobre o campo em desenvolvimento da economia comportamental, que põe em xeque a abstração que está no centro da teoria financeira contemporânea: a ideia de que os indivíduos que atuam no mercado são sempre "racionais", ou seja, capazes de processar informações de maneira perfeita, de modo a tomar decisões que sempre maximizem os seus ganhos e respondam da melhor maneira aos seus interesses. Diz Ferguson: "Se o sistema financeiro tem um defeito, é que ele reflete e amplia aquilo que somos, como seres humanos. Os booms e quebradeiras são produto, na raiz, da nossa volatilidade emocional". A despeito da crise, as ferramentas financeiras desenvolvidas nos últimos cinquenta anos não serão abandonadas. Os mercados já não conseguem viver sem elas – e isso é bom, pois, apesar de suas falhas, elas foram fundamentais para democratizar o crédito e o consumo, cumprindo seu papel histórico de alimentar o desenvolvimento. Como Ferguson sugere, mais que derrocada, a palavra que melhor se aplica ao processo por que estão passando os mercados financeiros neste exato momento é evolução. Como em tantas outras vezes no passado.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

10 - Reflexões sobre a democracia (1)

O texto abaixo é do filósofo Denis Rosenfield e trata das diferenças entre a democracia liberal (constitucional) e a democracia totalitária (coletivista-estatista):

Há duas acepções da democracia em questão, a da democracia totalitária e a da democracia representativa ou constitucional. A democracia totalitária volta-se contra o espaço de liberdade próprio da sociedade, de suas regras, leis e instituições, o que é precisamente assegurado pela democracia representativa. Esta se baseia no exercício da liberdade em todos os seus níveis, da liberdade de imprensa, de expressão, de organização política, econômica até o respeito à divisão dos Poderes republicanos, passando pela consideração do adversário como alguém que compartilha os mesmos princípios. Disputas partidárias, por exemplo, são regradas e não desembocam no questionamento das próprias instituições, vale dizer, da Constituição. Nesse sentido, processos eleitorais se inscrevem neste marco mais geral, não podendo, portanto, ter a autonomia de subverter os princípios constitucionais, o ordenamento das instituições. Processos desse tipo são necessariamente limitados.

Nas democracias totalitárias temos um processo de outro tipo, em que o voto passa a ser utilizado de forma ilimitada, como se ele fosse por si mesmo, graças à manipulação de um líder carismático e de seu partido, o princípio do ordenamento institucional. Eis por que tal tipo de regime político tenta funcionar por meio de assembleias constituintes e referendos sistemáticos, num constante questionamento de todas as instituições, tidas por "burguesas" e expressão das "elites". A democracia totalitária não admite nenhuma limitação, nenhuma instância que a regre. Tende a considerar tudo o que se interpõe no seu caminho como não-democrático, ganhando o epíteto de "direita", "conservador" e "neoliberal".

Pode-se dizer que a democracia totalitária se caracteriza por essa forma de ilimitação política, tendo como "inimigo" a limitação própria das instituições sociais, das instâncias representativas. Ela terá como alvo a ser destruído todo espaço que se configure como independente, em particular aquele espaço que torna possíveis as liberdades individuais e o processo de livre escolha. Não pode suportar um Estado de Direito, baseado precisamente nessas liberdades. Ou seja, a democracia totalitária não pode suportar a democracia liberal, também dita representativa ou constitucional, pelo fato de assegurar a existência de leis, de Poderes e de instituições, que não se podem adequar a tal processo de mobilização totalitária.

Eis por que as democracias totalitárias partem para questionar toda forma de existência democrática, social, que não se estabeleça conforme os seus desígnios. Os meios de comunicação que não aceitem ser instrumentalizados passam a ser considerados inimigos que devem ser abatidos, seja por diminuição de verbas publicitárias, seja por processos judiciais, seja por mecanismos de controle ou de banimento dos mais diferentes tipos. O contestador deve ser silenciado, pois não obedece aos ditames do "povo", de tal "maioria" politicamente constituída. As esferas que asseguram a livre iniciativa individual são progressivamente circunscritas e limitadas, de modo que as pessoas sintam medo e passem a agir de forma não autônoma, como se assim houvesse uma conformidade ao que é "popular". O Estado de Direito, por sua vez, é cada vez mais menosprezado, seja por não-obediência à legalidade existente, seja pela modificação incessante de leis e normas constitucionais, seja por atentados cometidos contra os princípios mesmos de uma sociedade livre.

A democracia totalitária volta-se contra os direitos individuais, contra os direitos das pessoas de não se dedicarem aos assuntos políticos, de se contentarem com seus afazeres próprios. Ela se volta contra as instituições por estas interporem um limite ao seu desregramento. Ela se volta contra a propriedade privada tanto no sentido material, de bens, quanto imaterial, de liberdade de escolha. Ela se volta contra todo aquele que reclame pela liberdade. Eis a questão com que nos defrontamos na América Latina. A clareza dos conceitos é uma condição da verdadeira democracia.

Texto completo em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090803/not_imp412618,0.php

domingo, 31 de maio de 2009

11 - Reflexões sobre o socialismo

Abaixo um trecho de um texto do filósofo Olavo de Carvalho sobre as contradições do ideal de igualdade social do pensamento socialista:

O ideal socialista é, em essência, a atenuação ou eliminação das diferenças de poder econômico por meio do poder político. Mas ninguém pode arbitrar eficazmente diferenças entre o mais poderoso e o menos poderoso sem ser mais poderoso que ambos: o socialismo tem de concentrar um poder capaz não apenas de se impor aos pobres, mas de enfrentar vitoriosamente o conjunto dos ricos. Não lhe é possível, portanto, nivelar as diferenças de poder econômico sem criar desníveis ainda maiores de poder político. E como a estrutura de poder político não se sustenta no ar mas custa dinheiro, não se vê como o poder político poderia subjugar o poder econômico sem absorvê-lo em si, tomando as riquezas dos ricos e administrando-as diretamente. Daí que no socialismo, exatamente ao contrário do que se passa no capitalismo, não haja diferença entre o poder político e o domínio sobre as riquezas: quanto mais alta a posição de um indivíduo e de um grupo na hierarquia política, mais riqueza estará à sua inteira e direta mercê: não haverá classe mais rica do que os governantes. Logo, os desníveis econômicos não apenas terão aumentado necessariamente, mas, consolidados pela unidade de poder político e econômico, terão se tornado impossíveis de eliminar exceto pela destruição completa do sistema socialista. E mesmo esta destruição já não resolverá o problema, porque, não havendo classe rica fora da nomenklatura (a elite dirigente burocrática nos regimes socialistas) , esta última conservará o poder econômico em suas mãos, simplesmente trocando de legitimação jurídica e autodenominando-se, agora, classe burguesa. A experiência socialista, quando não se congela na oligarquia burocrática, dissolve-se em capitalismo selvagem. Tertium non datur . O socialismo consiste na promessa de obter um resultado pelos meios que produzem necessariamente o resultado inverso.
Olavo de Carvalho. Que é ser socialista?

sexta-feira, 24 de abril de 2009

12 - A Questão do Oriente

Pessoal, estou postando um texto mais detalhado da Questão do Oriente. 


A Questão do Oriente

1. O Império Turco Otomano

Os turcos otomanos, originários da Ásia Central e seguidores do islamismo, criaram um dos mais poderosos impérios da Idade Moderna. Com capital em Constantinopla (que os turcos haviam tomado em 1453 depois de destruírem o que restava do Império Bizantino), o Império Otomano em seu apogeu no século XVI dominava os Bálcãs, a Armênia, parte do Cáucaso e a maior parte dos países árabes do Oriente Médio e do Norte da África. Entre os territórios que os turcos controlaram até a Primeira Guerra Mundial estavam as três principais cidades santas do Oriente Médio: Meca e Medina (sagradas para os muçulmanos) e Jerusalém (sagrada para os judeus, cristãos e muçulmanos). Em razão do seu tamanho, força militar e localização estratégica, o Império Turco Otomano foi a maior potência muçulmana do mundo em 1520-1914, embora a maioria dos seus súditos nos Bálcãs e na Armênia fosse constituída por cristãos – fator que contribuiu, no século XIX, para a desestabilização do poder turco. Politicamente, o império era caracterizado pelo despotismo, com uma monarquia absolutista encabeçada pelo sultão, considerado também califa (líder e protetor da ummah, a comunidade islâmica). A corte do sultão (que incluía o Grão-Vizir ou Sadrazam, espécie de primeiro-ministro) era conhecida como a Sublime Porta.

2. O declínio do Império Otomano e a Questão do Oriente



O expansionismo turco se esgotou no século XVII e, a partir do final do século XVIII, o Império Otomano entrou em processo de decadência em função de suas deficiências internas: uma sociedade tradicional, com uma ordem social baseada em distinções religiosas, que não conseguia acompanhar o ritmo de modernização do Ocidente; economia agrária com baixa produtividade e atraso tecnológico; despotismo da Sublime Porta e dos governadores (alguns, na prática, independentes do poder central), burocracia corrupta, administração ineficiente, tributação distorcida sufocando a maioria da população, exército obsoleto, banditismo endêmico, conservadorismo cultural e baixa mobilidade social. Na segunda metade do século XIX os problemas financeiros do império se agravaram por causa do aumento dos gastos militares (guerra contra a Rússia em 1853-1856), dos tratados comerciais com as potências européias que reduziram o protecionismo (e a arrecadação alfandegária) e das dificuldades em pagar a crescente dívida externa. Reformas modernizadoras foram tentadas na década de 1870, mas fracassaram, sobretudo por causa da resistência dos grupos mais conservadores. O resultado foi a Questão do Oriente – as incertezas sobre o futuro do decadente Império Otomano (o “velho doente da Europa”) e os problemas internacionais gerados por sua desintegração, como as disputas entre as grandes potências européias pelos territórios turcos no Oriente Médio, no Norte da África e nos Bálcãs.

2.1 A desintegração do Império Otomano

A crise do Império Otomano e seu processo de desintegração começou na década de 1770, mas foi agravada cem anos depois, nos anos de 1870, com a intensificação do nacionalismo dos povos dominados pelos otomanos e do imperialismo das grandes potências européias.

(a) Os movimentos nacionalistas pela independência dos povos cristãos

Nos Bálcãs foi o caso dos gregos, eslavos (sérvios, bósnios, montenegrinos, búlgaros) e romenos. No Oriente Médio foi o caso dos armênios. Frequentemente, a luta armada desses povos e a repressão otomana assumiram a forma de conflitos étnicos, acompanhados por uma grande violência sobre a população civil. O que se convencionou chamar de limpeza étnica – o extermínio de uma etnia pela rival – foi amplamente praticado pelos dois lados. A Grécia conseguiu ficar independente em 1829 (reconhecida pela Sublime Porta em 1832), mas continuou reivindicando mais territórios dominados pelos turcos. Entretanto, as revoltas nacionalistas dos eslavos, sobretudo sérvios e montenegrinos, nas décadas de 1810 e 1860 fracassaram e a dominação turca continuou reconhecida internacionalmente sobre seus territórios. Na década de 1870, Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Romênia e Bulgária nos Bálcãs, e a Armênia, na Ásia Menor, ainda eram províncias do Império Otomano com graus variados de autonomia.

(b) O imperialismo das grandes potências européias

Principalmente da Rússia, interessada em conquistar territórios no Sudeste Europeu, para obter acesso ao Mar Mediterrâneo (como Constantinopla e o Estreito de Dardanelos entre a Europa e a Ásia), e no Cáucaso (como a Geórgia), para poder penetrar no Oriente Médio e alcançar o Golfo Pérsico. Nos Bálcãs, a Rússia se apresentava como protetora dos povos eslavos locais, com os quais compartilhava um mesmo tronco lingüístico (a família de línguas eslavas) e uma mesma religião (cristã ortodoxa), idéia que foi a base do pan-eslavismo – a defesa da união, cooperação e solidariedade dos povos eslavos sob a liderança da Rússia. A política russa de penetração no Oriente Médio envolvia também se posicionar como a protetora da comunidade cristã (principalmente dos ortodoxos) e dos seus locais sagrados na Palestina e na Síria. A Áustria-Hungria também procurou expandir seu império à custa de territórios balcânicos controlados pelos otomanos (como a Croácia no final do século XVII e a Bósnia no final do século XIX). A França buscou ampliar seu controle no Mediterrâneo dominando Estados-vassalos do Império Otomano no Norte da África (Argélia, Tunísia). Com a Rússia, disputava também a condição de defensora dos cristãos da Palestina e Síria. A Itália igualmente desejava territórios otomanos no Norte da África e na Ásia Menor. A Grã-Bretanha, em princípio, estava mais interessada na preservação e estabilidade do Império Otomano, que serviria de barreira contra a expansão das outras potências européias no Oriente Médio, região que separava a Europa da Índia, a principal colônia britânica. Na maioria das vezes, o governo em Londres utilizou a diplomacia para frear o imperialismo das outras potências sobre os otomanos e negociar arranjos de redistribuição de territórios que não implicassem no desabamento completo do império turco ou em uma drástica alteração do equilíbrio do poder na Europa. No entanto, quando a diplomacia falhava ou algum problema interno dos domínios otomanos ameaçava interesses estratégicos da Grã-Bretanha, o governo britânico recorria a guerra, como na intervenção ao lado dos gregos na Guerra de Independência da Grécia (1821-1829) e ao lado dos otomanos na Guerra Turco-Egípcia (1832-1841) e na Guerra da Criméia (1854-1856, contra a tentativa russa de tomar territórios turcos).

(c) Principais momentos da Questão do Oriente a partir da década de 1870



1870-1875. Crescentes problemas econômicos. Os gastos militares (modernização da marinha), a corrupção das autoridades, tratados comerciais com as potências européias que reduziram o protecionismo (e a arrecadação alfandegária) e o aumento da dívida externa levou o Estado otomano à bancarrota em 1875. Más colheitas em 1873, acompanhadas pelos efeitos da Depressão Mundial iniciada na década de 1870 agravaram a situação econômica, aumentando a pressão por reformas, defendida pelo movimento político dos Jovens Otomanos (intelectuais nacionalistas liberais).

1875-1876. Revolta Eslava nos Bálcãs. Os cristãos da Bósnia e da Bulgária, sobretudo camponeses, rebelaram-se contra as taxas e os mal-tratos praticados pelas autoridades islâmicas locais, que não adotaram as reformas prometidas pela Sublime Porta. Em 1876, a Sérvia e Montenegro, auxiliados por voluntários russos, aderiram à revolta e declararam guerra ao Império Otomano. Os turcos conseguiram sufocar a rebelião com grande violência. Na verdade, os dois lados (rebeldes eslavos e forças otomanas) cometeram massacres, mas a repressão desencadeada pelo governo turco foi mais divulgada no Ocidente, causando indignação da opinião pública e dos governos europeus.

1876. Reforma liberal. Em meio às revoltas dos eslavos, estourou uma crise política e, em único ano (1876), o Império Otomano conheceu três sultões consecutivos, dois deles depostos. O terceiro, Abdulhamid II, em um primeiro momento cedeu às pressões por reformas e aceitou uma constituição liberal, que estabeleceu um parlamento e reduziu a autoridade do monarca, inaugurando o período conhecido como Primeira Era Constitucional (1876-1878). Na visão dos defensores da constituição (os Jovens Otomanos), a reforma política seria o primeiro passo para a efetiva modernização e salvação do Império Otomano.

1877-1878. Guerra Russo-Turca. Sob o pretexto de proteger os eslavos nos Bálcãs contra a violência da repressão turca, a Rússia declarou guerra ao Império Otomano (abril, 1877) e invadiu a Romênia, a Bulgária e o Cáucaso. Em janeiro de 1878, com as forças russas ameaçando Constantinopla, o governo turco pediu o armistício. A Rússia iniciou as negociações de paz, mas continuou avançando. Criticado pelo desastre militar, Abdulhamid II suspendeu a constituição e restaurou o despotismo (fevereiro 1878). Alarmada, a Grã-Bretanha enviou uma frota para impedir que os russos tomassem a capital otomana. A Rússia deteve o seu avanço, mas impôs aos turcos o Tratado de San Stefano (março 1878), um acordo de paz que reorganizou os Bálcãs visando a ampliação do poder russo na região e no Cáucaso: a Rússia anexou parte da Romênia (sul da Bessarábia) e da Armênia (província de Kars); a Sérvia e Montenegro ampliaram seus territórios e ficaram independentes; uma Grande Bulgária (estendendo-se do Mar Negro ao Egeu, incluindo a Macedônia e Rumélia Oriental) foi estabelecida como um principado autônomo sob ocupação militar russa; e a Áustria-Hungria ocupou a Bósnia-Herzegovina e o Sanjak de Novibazar (parte do atual Kosovo). A Grã-Bretanha, no entanto, opôs-se ao fortalecimento da Rússia nos Bálcãs e pressionou pela revisão do acordo de paz.

1878, junho-julho. O Congresso de Berlim. Organizado sob mediação do chanceler alemão Bismarck, o Congresso de Berlim confirmou, com o Tratado de Berlim, a independência da Sérvia, de Montenegro e da Romênia, os ganhos territoriais russos e o controle austro-húngaro sobre a Bósnia-Herzegovina e o Sanjak de Novibazar. Mas a decisão mais importante foi sobre a Bulgária, que foi dividida: o Principado Autônomo da Bulgária, com o território reduzido e governado por um príncipe não-russo, eleito por uma assembléia búlgara e aprovado pelas grandes potências; a Macedônia, com uma parte voltando a ser controlada pelo Império Otomano e outra parte incorporada à Sérvia; e a Rumélia Oriental, que também retornou ao domínio otomano como província autônoma. Em troca do apoio que deu ao governo turco, a Grã-Bretanha recebeu Chipre. O Tratado de Berlim agravou os problemas balcânicos ao deixar a Rússia, a Bulgária, a Sérvia e o Império Otomano insatisfeitos.

1881. A França ocupa a Tunísia. O pretexto foi conter os ataques de tribos tunisianas na fronteira com a Argélia, colônia francesa. A Tunísia virou um protetorado da França.

1882. A Grã-Bretanha ocupa o Egito. Em 1859-1869 os franceses construíram o Canal de Suez no Egito, ligando o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho e ao Índico, encurtando o caminho entre a Europa e a Ásia. O governo egípcio era o maior acionista do Canal, seguido pela França. Mas dificuldades financeiras (gastos excessivos na tentativa de modernizar o país) levaram o Egito a vender suas ações para a Grã-Bretanha em 1875. O controle estrangeiro sobre o Canal e a crescente presença de ocidentais causou um grande ressentimento entre os egípcios, sobretudo entre os militares nacionalistas. Distúrbios populares antiocidentais estouraram em 1881-1882. Temendo perder o controle sobre o Canal, a Grã-Bretanha invadiu o Egito em 1882 e ocupou o país, transformando-o em um protetorado.

1885. Unificação da Bulgária. Uma revolta na Rumélia Oriental resultou em sua união com a Bulgária, sob protestos da Rússia (insatisfeita com o governo do príncipe Alexandre von Battenberg) e da Sérvia (que temia o fortalecimento búlgaro).

1885-1886. Guerra Servo-Búlgara. A Sérvia exigiu territórios búlgaros como compensação pelo crescimento da Bulgária. A Sérvia foi derrotada

1896. Revolta em Creta. Os gregos locais fizeram um levante contra o domínio otomano. A revolta serviu de pretexto para a intervenção da Grécia, que entrou em guerra contra os turcos.

1897. Guerra Greco-Turca. Os gregos fracassaram em tomar territórios otomanos e um acordo de paz foi assinado.

1899. Protetorado britânico no Kuwait. Parte autônoma da província otomana de Basra, no sul do Iraque, o Kuwait era governado pelo sheik árabe Mubarak al-Sabah, o Grande. As tentativas otomanas de ampliar o controle sobre o país levaram o sheik a se aproximar da Grã-Bretanha. Os britânicos estabeleceram um protetorado no Kuwait, que formalmente continuou sendo território otomano – situação confirmada na Convenção Anglo-Otomana de 1913.

1903. Revolta da Macedônia. Liderada por grupos favoráveis à unificação com a Bulgária. Os otomanos sufocaram a insurreição.

1906. Formação do Comitê de União e Progresso (CUP). Organização política revolucionária nacionalista dos Jovens Turcos (herdeiros políticos dos Jovens Otomanos), reunindo estudantes, intelectuais e jovens oficiais. Objetivos: restauração da Constituição de 1876 e reformas modernizadoras para salvar o império do colapso.

1908, julho. Revolução dos Jovens Turcos. Começou com a revolta militar do III Exército turco na Macedônia liderada por Enver Pasha, membro do CUP. A revolta se espalhou pelo império e o sultão Abdulhamid II foi obrigado a restaurar a Constituição de 1876, inaugurando a Segunda Era Constitucional (1908-1920). Contudo, o CUP não conseguiu organizar um governo estável, gerando incertezas sobre a viabilidade do novo regime em um quadro de crescente violência social (banditismo, conflitos étnicos e religiosos). A instabilidade deixou o império mais vulnerável, favorecendo o separatismo e os interesses expansionistas dos vizinhos, que buscaram agir o mais rápido possível antes que surgisse um governo nacionalista forte capaz de restaurar o poder otomano.

1908, setembro. A Grécia anexa Creta. Fortaleceu o movimento de criação da “Grande Grécia”.

1908, outubro. Independência da Bulgária. Proclamada pelo príncipe Ferdinando I, que assumiu o título de czar da Bulgária.

1908, outubro. A Áustria-Hungria anexa a Bósnia-Herzegovina. Causou a crise da Bósnia. A Sérvia, que reivindicava a Bósnia-Herzegovina (território otomano ocupado pelos austro-húngaros desde 1878) visando criar a “Grande Sérvia”, viu seus planos serem frustrados. O distrito turco do Sanjak de Novibazar, que a Áustria-Hungria também tinha ocupado em 1878 e que era igualmente reivindicado pelos sérvios, foi devolvido aos otomanos. A Rússia, inicialmente, apoiou a Áustria-Hungria esperando receber em troca vantagens sobre o Estreito de Dardanelos. Contudo, a Grã-Bretanha barrou os planos dos russos, que se sentiram enganados pela Áustria-Hungria. A Rússia passou a dar apoio à Sérvia e a Alemanha confirmou seu apoio à Áustria-Hungria.

1909. Tentativa de contra-revolução no Império Otomano. Grupos conservadores, apoiados pelos fundamentalistas islâmicos e por Abdulhamid II, assumiram o controle de Constantinopla com o objetivo de restaurar o absolutismo e impor uma legislação religiosa baseada na sharia (leis islâmicas). Os revolucionários do CUP recuperaram o poder, depuseram Abdulhamid II e o substituíram por um novo sultão, Mehmed V.

Um agravante nessa questão foi aproximação da Alemanha do Império Otomano, iniciada na década de 1880, depois que os turcos perderam territórios para a França (Tunísia, 1881) e a Grã-Bretanha (Egito, 1882) e sentiram-se ameaçados pelas pretensões russas por Constantinopla e pelo Cáucaso. Os alemães estabeleceram uma missão militar para reorganizar o exército turco (1883) e, em troca de empréstimos ao governo otomano, obtiveram concessões (1899 e 1902) para construir a Ferrovia Berlim-Bagdá – na verdade, estender a ferrovia Berlim-Constantinopla para Bagdá e Basra, próxima do Golfo Pérsico. A penetração alemã no Império Turco Otomano e no Oriente Médio precipitou a aliança entre a Grã-Bretanha e a Rússia em 1907, simbolizada pela divisão da Pérsia (Irã) entre as duas potências.

Bibliografia

KARSH, Efraim e KARSH, Inari. Empires of the Sand - The Struggle For Mastery in the Middle East 1789-1923. Cambridge, Harvard University Press, 1999.

MACFIE, A. L. The Eastern Question 1774-1923. Londres, Longman, 1996.

sábado, 18 de abril de 2009

13 - Reflexões sobre a democracia (2)

Democracia: princípio ou arranjo?

O texto abaixo é do filósofo Olavo de Carvalho:

“Democracia integral” é indefinível, porque é autocontraditória.

Todo principiante no estudo da teoria política tem de saber, desde logo, que a democracia não é uma substância, uma coisa, mas uma qualidade que se tenta impor a uma substância preexistente, isto é, à sociedade tal como estava antes do advento da democracia. Tem de saber também, em conseqüência, que a democracia não é uma quantidade fixa, mas uma proporção – e que, por isso mesmo, não pode ser “integral”. A democracia constitui-se essencialmente de uma limitação mútua entre os poderes, o que subentende que esses poderes existam e que cada um deles não seja integralmente capaz de limitar-se a si mesmo. Todos os teóricos da democracia, mesmo os mais entusiastas, sempre ressaltaram que ela é um estado de equilíbrio instável, incapaz de fixar-se na perfeição do equilíbrio puro subentendido na palavra “integral”. A democracia não é um princípio universal, mas um arranjo pragmático. Princípios universais podem ser aplicados ad infinitum sem levar jamais a contradições. Por exemplo, o próprio suum cuique tribuere, ou a noção de que a responsabilidade de um ato incumbe a quem o cometeu e não a outra pessoa. Você pode aplicar indefinidamente esses princípios a todos os casos possíveis e imagináveis, nunca eles levarão a situações paradoxais e sem saída.

Bem diferentes são os arranjos pragmáticos, cuja aplicação é limitada por definição e que, estendidos para além do seu campo próprio de aplicação, se autodestroem ou se convertem nos seus contrários. A democracia é um dos exemplos mais óbvios dessa distinção, e isso é mesmo uma das primeiras coisas que o estudante de teoria política tem de aprender. Em toda democracia há, por definição, uma infinidade de abusos antidemocráticos. Suprimi-los por completo, como subentendido na noção de “democracia integral”, exigiria a instalação do controle social perfeito, portanto a eliminação da própria democracia. A democracia reside precisamente na busca permanente da compensação mútua entre fatores que, em si, não são democráticos. Isso quer dizer que enormes coeficientes de autoritarismo subsistem necessariamente dentro de qualquer democracia e que sem eles o próprio conceito de democracia não faria sentido. A “democracia integral” coincidiria em gênero, número e grau com a ditadura.

Em segundo lugar, democracias não existem no ar, mas em unidades políticas soberanas que coexistem com outras unidades políticas soberanas. Um regime de um país só pode ser democrático para dentro. Não pode conceder aos cidadãos e governos de outros países os mesmos direitos e garantias que dá aos nacionais. Isso implicaria a sua dissolução imediata. Uma “democracia integral” pressuporia a inexistência de fronteiras. Tratados internacionais podem, por sua vez, retroagir sobre as leis internas, diminuindo o coeficiente de direitos desfrutados pelo cidadão da democracia. Por outro lado, o governo mundial, necessário à implantação da “democracia integral”, seria também contraditório com a noção de democracia, por ser inatingível à fiscalização direta de todos os eleitorados locais – a não ser na hipótese de uma humanidade ilimitadamente poliglótica.

A existência mesma de um poder legislativo, que é um componente essencial da democracia, prova que ela não pode ser integral. Se você tem de estar continuamente produzindo novas leis, é porque as anteriores não produziram a “democracia integral”. Se a produzirem, a subseqüente supressão do legislativo a transformaria ipso facto em ditadura. Basta isso para mostrar como as idéias de pureza e democracia são radicalmente incompatíveis, não apenas no baixo mundo dos fatos, mas na própria esfera dos conceitos absolutos.

Olavo de Carvalho. A Proibição de Comparar: Brasil-Mentira III. Diário do Comércio, 17 de abril de 2009 in http://www.olavodecarvalho.org/semana/090417dc.html

quarta-feira, 8 de abril de 2009

14 - Reflexões sobre a democracia (3)

Democracia, vontade popular e valores culturais

O texto abaixo é do jornalista Reinaldo Azevedo:

Nem o povo tem direito de golpear a democracia. Alguns relativistas vieram, então, com suas bizarrices: “Oh, mas os governos são construções históricas, não caem do céu!” Ora, não me digam! Ou então: “Mas o que é a verdadeira democracia?” — estes acreditam que ou a verdade cai do céu, ou tudo é falso.

É claro que a democracia representativa é uma construção histórica. Ela não se assenta apenas na observância das leis (estado de direito), posto que é possível haver “ditaduras de direito” — ou seja: elas só esmagam o cidadão segundo o código discricionário e transformam em leis as proibições as mais estúpidas. A democracia também não se assenta apenas na vontade da maioria, posto que é possível haver regimes violentos que contam com apoio popular, embora suas práticas sejam condenáveis (voltaremos a essa palavra; não se esqueçam dela): os fascismos europeus da década de 40 do século passado são clássicos no gênero; é possível que o Taleban, no Afeganistão, tivesse o apoio da maioria.

Então vejam: o estado de direito não basta para fazer uma democracia. O estado de direito mais a vontade da maioria não bastam para fazer uma democracia. Alguém pode indagar: “E se acrescentarmos aí, Reinaldo, a divisão e independência entre os Poderes? O conjunto basta para fazer uma democracia?” Melhora muito, meus caros. Mas ainda não basta. Digamos — não é o caso, mas digamos! — que o Legislativo e o Executivo na Venezuela, hoje, fossem independentes. Se os três Poderes continuassem irmanados na defesa das mesmas teses ditas “bolivarianas”, esmagando a divergência, não se teria democracia. Mas lhes dou uma exemplo ainda mais óbvio.

As teocracias islâmicas, por exemplo, não podem ser democracias. Na maioria delas, há estado de direito, com respeito à vontade da maioria, e os Poderes até são independentes — dentro da independência possível. Ocorre que a religião se torna um redutor de todas as demandas, e seu valor deita sua sombra sobre a sociedade.

Escrevi a palavra-chave: VALOR. Uma democracia tem de estar assentada no estado de direito, na vontade da maioria, na separação e independência entre os Poderes e nos VALORES. Pergunto: é democrático que a maioria decida que nem todos são iguais perante a lei? É democrático que a maioria ache normal que a lei seja posta a serviço do grupo governante da hora? É democrático, para ficar nos termos do senador Cristovam, que o povo decida que não quer mais um Parlamento? Pode haver democracia islâmica, por exemplo, dado que as mulheres, sob o Islã (ou, se quiserem, sob os vários “Islãs”), não têm os mesmos direitos dos homens? "Ah, não se trata de uma questão de direitos, mas de cultura..." Pois é! Eu fico com os direitos...

A tese de que a vontade da maioria é a verdadeira força da democracia é autoritária e filoditatorial. Eu realmente acredito que alguns valores sociais e morais são patrimônios incorporados à evolução da civilização, como as vacinas por exemplo — e, a exemplo delas, nos fazem viver melhor. Eu realmente acredito que alguns valores da chamada cultura ocidental — como tolerância, respeito a minorias, igualdade perante a lei, liberdade religiosa — a fazem superior a outras realidades culturais.

Como diria Barack Hussein Obama, eu não estou em guerra com o Islã — nem com ninguém. Eu sou, isto sim, é um defensor radical, intransigente mesmo, desses valores. E, com efeito, acredito que os homens de toda a terra viveriam melhor sob o seu abrigo.

Sob este ponto de vista, reconheço meu lado quase jesuítico. Acho que os valores da democracia têm de ser espalhados pelos quatro cantos da terra. E creio que devem ser devidamente contidos aqueles que, mesmo estando entre nós, pretendem sabotá-los. Porque o regime de liberdades pode tolerar quase tudo — só não pode tolerar os intolerantes.

Houvesse um símbolo ou emblema para o regime democrático, como há para o cristianismo, por exemplo, eu não teria dúvida de nele inscrever a frase "In hoc signo vinces".

Reinaldo Azevedo. Textos de Formação - Mas o que é essa tal de democracia ? in http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/

quinta-feira, 5 de março de 2009

15 - Reflexões sobre a democracia (4)

Os fins justificam os meios?

O texto abaixo são trechos de uma postagem do jornalista Reinaldo Azevedo no seu blog:

É legítimo DESCREVER aspectos positivos mesmo num regime autoritário, numa ditadura que seja, porque eles podem ajudar a explicar por que tal ditadura se sustenta ou mesmo foi implementada. O que pode distinguir democratas de não-democratas é saber se tais aspectos positivos são tomados como um NORTE, como um caminho a ser seguido.

Um democrata, e eu sou um democrata — só aceito o poder exercido por meio de eleições livres, respeitando-se os direitos das minorias e dos indivíduos —, não magnifica aspectos positivos de um regime ditatorial para justificar toda a ditadura. Ao contrário: a um democrata cumpre deixar claro que conquistas de qualquer natureza — sejam as econômicas, sejam as sociais —não justificam a ditadura.

Quais são as forças que, hoje em dia, condescendem com ditaduras? Quem é que concede com o autoritarismo em nome de supostos benefícios sociais? Seriam os ditos “conservadores”? Seriam os herdeiros do regime de 1964, que nem existem mais?

Reconhecer qualidades positivas num regime autoritário para, por metonímia ideológica, TOMAR A PARTE PELO TODO é legítimo para quem não é um democrata.

Reinaldo Azevedo. “Ainda a ditabranda e algumas questões de princípio” in http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/ 05 março 2009

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

16 - Entrevista com Robert Kagan e dicas de seus livros

Entrevista com o historiador e cientista político Robert Kagan (n. 1958), publicado no jornal O Estado de São Paulo no dia 14 de fevereiro de 2009.

''Obama representa continuidade''

Para um dos principais neoconservadores dos EUA, novo presidente já demonstrou que não dará guinada na política externa. Por Roberto Simon.

Nadando contra a maré de otimismo provocada pela eleição de Barack Obama, Robert Kagan, do Carnegie Endowment for Peace, adverte: "Não espere grandes mudanças na política externa dos EUA. Com Obama, haverá continuidade." Cofundador do centro de estudos Project for the New American Century - bastião neoconservador que teve forte influência sobre o governo George W. Bush -, Kagan disse ao Estado que os EUA se manterão fiéis a seus fundamentos diante da ascensão de "autocracias", como a Rússia e a China.

Em um artigo intitulado "Obama, o intervencionista", publicado em 2007, o senhor disse que o então pré-candidato democrata teria uma política externa "idealista", calcada na promoção de valores americanos. Mas, desde sua posse, Obama tem mostrado pragmatismo, por exemplo ao tentar dialogar com Irã. O que mudou?

Não considero que dialogar com o Irã vá contra aquilo que eu havia dito em 2007. Se olharmos para as pessoas que ele escolheu - (a secretária de Estado) Hillary Clinton, (o assessor para Segurança Nacional) Jim Jones e (o secretário de Defesa) Robert Gates -, certamente esses nomes não representam uma revolução. É uma continuidade. Em relação aos seus atos, uma das primeiras medidas do novo governo foi autorizar bombardeios dentro do Paquistão. No Afeganistão, a ênfase continua sendo na dimensão militar e não no desenvolvimento do país. Quanto ao Irã, ele diz querer conversar, mas o conteúdo da conversa é o mesmo que esteve em pauta nos EUA na última década - evitar que Teerã adquira armas nucleares. E se esse "diálogo direto" fracassar? Isso Obama ainda não respondeu. Uma coisa é clara: qualquer um que espere uma alteração drástica nos objetivos e meios da política externa americana se desapontará com Obama. A ideia de que os EUA devem apoiar e promover seus ideais no mundo é parte fundamental da ação americana e o presidente não deu nenhum indício de que abandonará essa tradição.

Desde que assumiu, Obama tomou medidas para reverter o legado de George W. Bush, do fechamento de Guantánamo em um ano, ao veto às prisões secretas da CIA. Como o senhor avalia essas políticas?

Eu concordo com o fechamento de Guantánamo, mas Obama já percebeu que é mais fácil falar do que fazer algo sobre isso. Diverti-me com o fato de europeus dizerem que podem aceitar alguns desses presos, sob a condição de que os detidos não venham mais a cometer atos terroristas - essas pessoas estão presas até agora justamente porque não sabemos o que acontecerá se as soltarmos (risos)! Concordo com as primeiras medidas, com seus objetivos, mas não será fácil cumpri-las.

O senhor acredita que essas políticas podem, de fato, mudar a imagem dos EUA no mundo?

Certamente Obama melhora a imagem americana em relação a Bush. Mas, do ponto de vista histórico, não é verdade que o mundo "amava" os EUA e, recentemente, passou a nos odiar. A América Latina é um ótimo exemplo disso: a região amou os Estados Unidos nos últimos cem anos?

Em seu último livro, "O Retorno da História e o Fim dos Sonhos" (Editora Rocco), que saiu no mês passado no Brasil, o senhor critica a tese do "Fim da História" de Francis Fukuyama, para quem a democracia liberal triunfou com o fim da Guerra Fria. O senhor diz que isso foi uma ilusão e hoje poderes autoritários, como Rússia e China, "trouxeram de volta a história". Mas, recentemente, Fukuyama contra-argumentou, dizendo que o autoritarismo não representa uma alternativa ideológica real.

Sou amigo de Frank, mas ele reformulou seus argumentos (risos). Em seu livro ele não fala sobre formas de autoritarismo, mas do triunfo da democracia. Digo apenas que a "inevitável" vitória da democracia, exaltada nos anos 90, nunca foi "inevitável". Ideias devem ser apoiadas concretamente nas potências mundiais e, agora, Rússia e China advogam um sistema autocrático. Não há hegemonia da democracia.

O senhor participou, juntamente com Fukuyama, aliás, de uma campanha pela "troca de regime" em Bagdá um ano antes da invasão americana. Há arrependimentos?

É difícil se arrepender de remover Saddam Hussein do poder. Se ele ainda governasse, teríamos muito mais problemas. Pessoas não valorizam o fim de Saddam e enfatizam as atuais dificuldades. A situação do pós-guerra foi comprometida pela péssima forma com que Bush conduziu a reconstrução. Os erros da inteligência americana quanto às armas de destruição em massa também foram graves. Pagamos um alto preço por isso, mas agora as coisas estão indo bem. Devemos ser pacientes.



Vale a pena ler as seguintes obras de Robert Kagan:

Do Paraíso e do Poder – Os Estados Unidos e a Europa na Nova Ordem Mundial. Rio de Janeiro, Rocco, 2003.

Dangerous Nation – America’s Foreign Policy from Its Earliest Days to the Dawn of the Twentieth Century. Nova York, Vintage, 2006.

The End of History in The New Republic, 23 abril de 2008.
http://www.tnr.com/story.html?id=ee167382-bd16-4b13-beb7-08effe1a6844

O Retorno da História e o Fim dos Sonhos. Rio de Janeiro, Rocco, 2009.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

17 - Reflexões filosóficas

Em 2007, postei o texto abaixo em um blog mais antigo.

Para refletir:

Você algum dia já imaginou a possibilidade de estar inteiramente errado? Já concedeu a essa hipótese a atenção tranqüila e sem prevenções que concedeu à hipótese oposta? Já buscou argumentos em favor da possibilidade que mais o desagrada no momento, já buscou imaginar as coisas como as imaginam os que acreditam nela? Já tentou se transportar em pensamento para dentro da alma dessas pessoas, sentir como elas, ver o mundo como elas vêem, como se você fosse representar o papel de uma delas no teatro e tivesse de fazê-lo com o máximo realismo interior ao seu alcance e, pior ainda, despertar a simpatia da platéia pelo personagem?

Olavo de Carvalho in Recado atrasado a Rodrigo Constantino (www.olavodecarvalho.org)