domingo, 23 de junho de 2013

66- As Jornadas de Junho (Parte V)


Pessoal, um outro bom texto do jornalista Reinaldo Azevedo, do seu blog no site da Veja, sobre os protestos das últimas semanas. Seguem trechos adaptados do texto original.


Não posso, contra tudo aquilo que penso, assentir com práticas que, se generalizadas e tornadas um norte politico, ético e moral, conduziriam o país a um mal maior do que aquele que se propuseram a combater. Ainda que tais procedimentos possam atingir em cheio figuras e partidos que execro, essa seria uma batalha sem princípios — e é contra os meus princípios adotar os métodos daqueles a quem combato. Eu não cultivo a humildade socrática e jamais diria “só sei que nada sei”. Prefiro o que poderia ser, talvez, uma divisa aristotélica: SÓ NÃO SEI O QUE NÃO SEI. O fato de eu, como toda gente — incluindo governo e oposição —, não saber direito o que está em curso nem qual será a forma do futuro não implica que eu deva esquecer o que sei. Entenderam?

O fato de ignorarmos as causas exatas de um determinado fenômeno não pode nos levar a nos colocar diante deles como uma tabula rasa, de sorte a nos deixar conduzir pelo puro empirismo. O fato é que sei algumas coisas. Sei, por exemplo, que não existe política fora da política. Sei, por exemplo, que não existe saída civilizada fora da representação democrática. Sei, por exemplo, que a imposição coletiva de descontentamentos individuais ou de grupos nem protege o individualismo nem cria coletividades mais tolerantes. Sei, por exemplo, que os oportunistas sempre se beneficiam da depredação dos valores institucionais. Só não sei o que não sei. Mas sei o que sei.

Seria tolo ignorar o que aprendi até aqui e me deixar arrastar pela voragem das ruas contra as minhas convicções. E entendo, sim, por que muita gente boa se entusiasma.

Eu, que desconfio de coletivos e coletivismos; que repudio os aiatolás que se arvoram em juízes do pensamento alheio; que sou um fanático da distinção entre as esferas pública e privada da vida, eu não posso — e não vou — dar piscadelas àqueles que acreditam que podem impor aos outros a sua vontade; que a rua, qualquer rua, pode ser apropriada como espaço de reivindicação de maiorias ou minorias que pretendem falar em nome da causa geral.

E eu não tenho o menor receio de ser contra a maiorias. Nunca tive. Pesquisa Datafolha, segundo a Folha deste domingo, aponta que 66% dos paulistanos acham que manifestações de rua devem continuar; 34% acham que não. Que elas continuem, aprovo. Que tomem qualquer via pública, quando der na cabeça das lideranças, aí não. Nesse caso, estou com os 34%. Eu acho que o mundo será melhor quanto mais pudermos, cada um de nós, cuidar de nossa própria vida e da vida da nossa família. “Então não existem demandas públicas, Reinaldo?” Existem! Por isso existe a praça. Segundo o Datafolha, 78% dos paulistanos apoiam a ocupação da Paulista. É? Pois eu estou com os 28%, então. Não posso negar o que sei. E EU SEI QUE NEM MESMO AS MAIORIAS TÊM O DIREITO DE CASSAR O DIREITO CONSTITUCIONAL DE IR E VIR. E se todos aqueles que tiveram algo a dizer ou alguma demanda a apresentar ao estado decidirem fazer o mesmo? Qual é o limite? Quem esses juízes do espaço público acatam como juiz? “Ah, mas o direito de se expressar e se reunir também está na Carta!” Eu sei e apanhei bastante para conquistá-lo. Reitero: a praça está à disposição. Por mim, o Vale do Anhangabaú, por exemplo, pode ficar reservado só para manifestações.

Aí eu vou lá levar o meu cartaz. Erguerei um contra a corrupção, contra a PEC 37, contra o eventual esforço de transformar o julgamento do mensalão num pastelão, contra a inércia do Congresso, contra a incompetência no gerenciamento da saúde, contra a morte da Baleia (a cadela de “Vidas Secas”), contra comida japonesa, contra o Bolero de Ravel, contra a vírgula entre sujeito e predicado, contra o risco de que as orações subordinadas sejam extintas em nossa imprensa… Eu tenho demandas imensas.

Mas não me peçam…
Mas não me peçam para aplaudir, porque não vou, uma onda que professa seu ódio à política sob o pretexto de que pretende melhorá-la.
Não me encanta, de modo nenhum!, esse ataque generalizado à política como morada exclusiva da falta de ética e da ladroagem. Exclusiva não é. Mas isso também não resolve, é claro. Basta que seja para merecer um protesto. Mas, então, que se melhore a política, ora!

Nos protestos havidos em Brasília, havia muita gente gritando contra Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, por exemplo. Mas é de uma estupidez sem par chamar de pacífica uma manifestação que toma o teto do Congresso, com cartazes convertidos em tochas. Eu não seria eu se não escrevesse tudo. E, então, vou escrever tudo: se o diabo me obrigasse a escolher entre a democracia que temos, com Renan Calheiros lá, sendo quem é, e os que acreditam que podem sapatear sobre o teto do Parlamento, eu teria de escolher Renan. O motivo é muito simples: no sistema que temos, eu, ao menos, posso escrever o que penso sobre o presidente do Senado… Escrevi contra as manifestações e recebi centenas de ameaças de morte e espancamento. “A culpa não é dos milhares que se manifestam!” Nem eu estou dizendo que seja. Mas é preciso, sim, cuidar dos sentimentos que a gente mobiliza quando faz determinadas reivindicações.

O ódio à política — e, não há como negar, há uma parte da imprensa encantada com isso (vou escrever a respeito; lembrem-se que esta é apenas a primeira parte deste texto) — nos conduz a formas pré-políticas de resolução de conflitos: ou à guerra de todos contra todos ou à má política. Em seu péssimo pronunciamento, a presidente Dilma anunciou a disposição de levar para o Palácio do Planalto os tais movimentos sociais. Como serão usados? Serão tratados como supostos representantes do povo, numa espécie de “by pass” no Congresso? Com que legitimidade? Eu não quero uma democracia tutelada por conselhos populares, formados por pessoas que outorgam a si mesmas o poder da representação.

Encerro dando uma pista do que virá na parte 2. Anotem aí: dez anos de ataque sistemático à ordem constituída por meio da depredação de instituições e valores — Congresso, Judiciário, imprensa, Polícia, Forças Armadas — não poderiam resultar numa coisa muito boa.

Texto integral em http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/

65 - As Jornadas de Junho (Parte IV)


Pessoal,  segue uma reportagem do G1 com diversas  análises sobre os protestos das últimas semanas.

Atos são maior mobilização sem líder da história brasileira, dizem analistas

Na quinta, 1,25 milhão protestaram nas ruas em mais de 100 cidades.
Especialistas ouvidos pelo G1 buscam explicações para manifestações.

Os protestos que se espalharam por quase todos os estados do Brasil na quinta-feira (20) representaram a mais ampla e numerosa mobilização popular do país sem liderança definida e, de acordo com dois sociólogos, uma historiadora, um filósofo, dois antropólogos, um advogado e um juiz ouvidos pelo G1, ainda não é possível dizer qual rumo tomarão.

Com mais de 1,25 milhão de pessoas tomando as ruas de mais de 100 cidades, com 300 mil apenas no Rio de Janeiro, os atos comemoraram a redução da tarifa do transporte coletivo em cidades importantes e reivindicaram outras melhorias para o país, como o combate à corrupção e à repressão policial, investimentos na saúde e na educação e a redução de gastos com os grandes eventos esportivos, Copa e Olimpíada.

Para os especialistas, ainda é cedo para prever as consequências de longo prazo dos atos de quinta. Mas, segundo eles, um caráter inédito dessa mobilização popular é a insatisfação geral dos brasileiros com as instituições que os representam e com os partidos políticos que as comandam.

Segundo Márlon Reis, juiz de direito no Maranhão, cofundador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, o Brasil mudou nesta semana. "Já tem algo inédito que é a ida às ruas sem a liderança de instituições constituídas. Historicamente, foram os partidos que sempre conseguiram levar pessoas às ruas."

A antropóloga Yvonne Maggie, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista do G1, afirmou que "o Brasil se transformou em uma espécie de motim. É protesto, mas num estilo sem liderança, numa visão até romântica. As manifestações partem de grupos variados, com várias estratégias”.

As bandeiras e a participação individual, com rejeição a qualquer tipo de liderança, chamaram a atenção de Yvonne. “Era cada cartaz um post, cada post um indivíduo. Mas o que mais me impressionou foi a consciência de que todas as pessoas que estavam lá estão tendo a força do povo revoltado, eles não querem liderança.”

Segundo a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo (USP), em termos de quantidade de pessoas na rua aglomeradas, o movimento maior do Brasil ainda é o das Diretas Já, quando um comício reuniu um milhão de pessoas apenas no Anhangabaú, em São Paulo. Porém, ela afirma que o movimento atual é novo no sentido de como se organiza. "O chamado se faz pela internet e as pessoas aceitam o chamado pela internet e entram no movimento."

Enquanto governos calculavam prejuízos, manifestantes avaliavam os protestos e familiares enterravam os dois mortos dos atos de quinta, em Ribeirão Preto (SP) e Belém, novos protestos continuavam a eclodir nesta sexta-feira (21). Para Frederico Almeida, coordenador do curso de direito da FGV, pode-se falar em dois movimentos: o primeiro, motivado pelas tarifas, e um segundo momento, em que mais pessoas aderiram motivados por uma insatisfação geral, principalmente após a repressão da polícia. "O que estamos vendo hoje é uma mistura de algum resquício de um movimento pela tarifa, que em algumas cidades ainda não se resolveu, com um movimento de insatisfação geral."

Para Claudio Couto, sociólogo e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), os episódios registrados nas ruas têm deixado analistas e a classe política confusos e perplexos, o que, na avaliação dele, fez com que a presidente Dilma Rousseff não viesse a público na quinta e deixasse seu pronunciamento apenas para esta sexta. "Está todo mundo muito perdido, imagino que ela também esteja. Daí decorre que ela precisa vir a público sabendo o que dizer. Se ela erra o tom do que diz pode gerar mais ruído ainda. Eu interpretaria esse silêncio de uma dificuldade de definir exatamente o que deve ser dito a partir de agora", disse Couto, na tarde desta sexta, antes de o pronunciamento de Dilma ir ao ar.

Vitórias dos manifestantes
Demanda inspiradora dos atos, a redução da tarifa do transporte público foi atendida após duas semanas de protestos e confrontos nas ruas por prefeitos e governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e mais de dez cidades. A persistente pressão popular fez com que o discurso dos governantes mudasse. Fernando Haddad e Eduardo Paes, prefeitos de São Paulo e Rio, e Geraldo Alckmin e Sérgio Cabral, governadores dos dois estados, que no início do mês descartavam qualquer revogação do reajuste, sob pretextos de que eles eram tecnicamente impossíveis, recuaram na noite de quarta-feira (19) e atenderam à demanda.

O engenheiro civil Lúcio Gregori, que foi secretário municipal de Transporte de São Paulo na gestão da ex-prefeita Luiza Erundina, a recapitulação das prefeituras mostra que não só a redução era possível. "Isso é tudo um pouco de catimba, como a gente chama no futebol", afirmou ele.

"Admitindo que todas as contas de cálculo tarifário estejam certas, então isso é questão de remanejamento de verbas, coisa corriqueira numa administração pública. A Prefeitura de São Paulo tem manobra orçamentária, pode remanejar até 15% da verba. Não pode tirar de coisas importantes, mas pode tirar, por exemplo, da verba publicitária. O que não precisa é ameaçar como se fosse uma punição."

Em meio às manifestações, outros governantes decidiram dar mais ouvido às demandas relacionadas ao transporte e a outras áreas sociais. Em Macapá e Belém, prefeitos aceitaram receber líderes dos protestos para falar sobre as tarifas. Na capital do Amapá, além da passagem congelada até 2014, o prefeito prometeu um estudo para implantar uma linha de ônibus 24 horas, implantação do bilhete único até o fim do ano, aumentar a frota de ônibus e construir três terminais.

Em São Paulo, nesta sexta-feira o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou o financiamento de R$ 2,3 bilhões para a expansão do metrô. No Paraná, o governador Beto Richa desautorizou o reajuste de 14,61% na conta de luz. No governo federal, o Ministério da Saúde encaminhou ao Congresso, em caráter de urgência, um projeto de lei que perdoa as dívidas tributárias das Santas Casas com a União.

Alagoas anunciou redução de IPVA para ônibus e ICMS sobre o combustível para que as empresas mantenham os preços.Em Campo Grande, a Câmara suspendeu o café da manhã reforçado polêmico que era oferecido aos vereadores. E, a exemplo da capital paulista, em Maringá (PR) deverá ser criada uma CPI do transporte coletivo. Apesar das manifestações, não houve mudanças em alguns estados como Bahia, Ceará, Roraima, Rondônia, Piauí e Maranhão.

Para Frederico Almeida, da FGV, a meta do Movimento Passe Livre (MPL) foi atingida porque o grupo desenvolveu uma pauta, constituiu um interlocutor e trabalhou para conseguir o que queria. Agora, as demais reivindicações são genéricas, superficiais e não há uma liderança definida para, por exemplo, definir a meta de quem é contra a corrupção e responder a essas pessoas. "Há dois riscos desse tipo de movimento mais difuso. Um é ele se esvaziar porque na verdade é uma conversa de muita gente falando ao mesmo tem sem um interlocutor definido. O segundo é isso se acirrar como uma incapacidade de diálogo das manifestações com o sistema político. Se de repente cria um descolamento total desse sistema com o povo que está na rua, a gente corre um risco de perder a nossa democracia.”

A violência da Polícia Militar
Os especialistas afirmam que parte da motivação das centenas de milhares de pessoas que decidiram aderir aos movimentos foram as imagens da força excessiva aplicada pela Polícia Militar de São Paulo para dispersar o ato do dia 13 de junho, que deixou dezenas de feridos, inclusive mais de dez jornalistas. Após esse protesto, as balas de borracha foram proibidas nas manifestações populares. Nas manifestações da última quinta, pelo menos oito cidades tiveram confrontos com a polícia que deixaram mais de 200 feridos. Nesta sexta, a postura policial virou alvo de escrutínio em cidades como Porto Alegre e Salvador.

"A polícia agiu massacrando manifestantes pacíficos e atuando de forma indiscriminada", avaliou Claudio Couto, da FGV. "Isso gerou uma reação que resultou na manifestação de segunda-feira que propiciou o engrossamento do movimento –o que, a princípio, foi uma grande vitória."

Professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), Marco Aurelio Santana afirma que a postura do Estado está sendo questionada, pela forma pouco preparada ou violenta como age.

"Temos de estar todos preocupados. Eles querem tirar pessoas da mobilização social, isso é um problema para todos porque é a liberdade que está em jogo. A manifestação tem sido um cartaz contra o aborto, outro pró-aborto. É preciso entender também que não há democracia sem essas instituições, se não pode haver uma crise de proporções nunca vistas. Esse grupo mistura torcidas organizadas, skinheads, verdadeiras milícias fascistas. Quando você tira um, você tira todo mundo. Nem a polícia pode agir desta forma.”
 

A nova geração de protestos
Ricardo Monteagudo, professor de filosofia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília, chamou a atenção para o papel da internet e das redes sociais nos protestos.

"Todo mundo foi pego de surpresa: os organizadores, os líderes políticos, a população em geral. A impressão que dá é que não conseguíamos mensurar certa insatisfação espalhada no ar e que emergiu de uma hora para outra.”

As múltiplas e individuais bandeiras também foram a novidade percebida pelo antropólogo inglês e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Peter Fry.

“O interessante é que cada um coloca suas próprias queixas naquilo que vê. É uma espécie de insatisfação generalizada, como muitos têm dito. Está tudo em cartazes amadores, escritos à mão”, diz.

“É uma explosão de insatisfação, sem liderança. Nunca vi neste país do futebol as pessoas abrirem mão da Copa a favor da educação e da saúde. As pessoas recusando pão e circo pelas coisas que acham mais importante”, explicou o antropólogo.

Marco Aurelio Santana, também da UFRJ, afirma, porém, que é preciso também repensar os limites de um movimento com muitas bandeiras, contraditórias, algumas que se anulam entre si.

"Minha preocupação hoje é com um foco de que há reação compreensível com o desgaste dos partidos, dos sindicatos, até clichê, quase óbvio. Minha preocupação é que esse sentimento tenha se tornado tão claro para grupos para se espancar filiados a alguns partidos."

A reação dos políticos
O protesto em Brasília reuniu cerca de 60 mil pessoas na quinta-feira e passou pelo Palácio do Planalto atrás da presidente Dilma Rousseff.

A mandatária, porém, deixou o local e sua única atitude pública foi convocar uma reunião com ministros para a manhã desta sexta-feira (21). Após o encontro, ela não deu declarações, mesmo após pedidos da população e dos parlamentares, e marcou um pronunciamento para a noite.

Para Claudio Couto, da FGV, "ela certamente não está ainda conseguindo saber o que dizer".

Além de Dilma, chefes do Executivo de diversas cidades e estados também tentam se adaptar ao novo tom de voz da população. Direta ou indiretamente ligadas aos protestos, alguns projetos de lei e decisões avançaram ou foram adiadas de acordo com as reivindicações das ruas. Uma das decisões do Congresso foi adiar a votação da PEC 37, antes agendada para a semana que vem. A proposta retira poder de investigação criminal do Ministério Público e é conhecida como "PEC da Impunidade". O projeto que flexibilizaria a Lei da Ficha Limpa também saiu da pauta.

Para o juiz Márlon Reis, essas duas decisões são efeito imediato dos movimentos, que também devem servir para que a reforma política seja fortalecida.

“Isso deve implicar em outras mudanças porque, se os líderes institucionais forem sábios, em vez de levar suas bandeiras pra dentro desses movimentos, de tentar encontrar interlocutores para se negociar, eles vão ter que ouvir o que estão dizendo. A postura dos líderes tem que ser de humildade. Essas vozes todas traduzem expressões do que pensa a maioria da sociedade”, afirma.

Segundo ele, esses movimentos são resultado do aumento da exclusão, de uma falência no sistema eleitoral e de representação.

“Os primeiros atos que ocuparam prédios públicos foram voltados ao parlamento, assembleias, Congresso Nacional. É muito simbólico isso. Gostaríamos de estar representados. E essa contínua falta de sermos ouvidos só aumenta a indignação”, afirma.

“Isso veio se acumulando. Teve a escolha do Feliciano, escândalos, CPI do Cachoeira que foi arquivada com um relatório lacônico. É uma tática de varrer lixo para debaixo do tapete. E tudo isso na verdade, é o contrário, isso vai gerando uma energia contida, que uma hora explode.”

Para Frederico Almeida, professor da FGV, os partidos e o sistema político precisam  se reinventar. "Eles têm que abrir canais para receber essas demandas e dar encaminhamento a elas. Cabe ao sistema político identificar essas pautas e promover uma agenda, uma discussão aberta. Agora é o momento que o sistema político tem que reagir. E tá demorando pra reagir.”

A visão do Brasil no mundo
A proporção que os protestos tomaram, e a violência com que eles foram reprimidos nos primeiros dias, também chamaram a atenção da imprensa internacional. Acostumado nos últimos tempos a figurar nos jornais do exterior com notícias da Copa das Confederações e dos preparativos para a Copa do Mundo e a Olimpíada de 2016, o Brasil entrou na lista de países com revoltas populares expressivas e ganhou protestos de apoio em dezenas de cidades estrangeiras.

Antropólogo inglês e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Peter Fry afirma que os protestos mudaram a visão que o mundo tem sobre as dificuldades que se enfrentam no país.

"Toda a propaganda do Brasil lá fora era no sentido oposto, de que tudo estava melhor e bem por aqui. Acho que deve ter mudado. Devem estar se perguntando como o Brasil vai se justificar."

Segundo ele, o resto do mundo deve ter ficado perplexo com os acontecimentos das últimas semanas. sobretudo porque o futebol também foi mencionado pelos cartazes.

"Acho que a frase que pede padrão Fifa para o país é genial, é genial pedir isso para educação e saúde. Porque tudo o que a Fifa pediu, o país começou a fazer. Mostra que é uma questão de vontade, que se quer pode fazer."

Maria Aparecida de Aquino, professora da USP, a repercussão internacional foi a altura do movimento.

"Ela demonstrou o que é que o movimento tem de importante para a realidade nacional. Eles reagiram muito claramente dizendo ‘é um movimento significativo, as pessoas precisam estar atentas’. A reação internacional mostrou mais que a reação interna esse sentido de urgência que o movimento dá."

SOCIÓLOGO DIZ QUE MOBILIZAÇÃO E ATO DO RIO FORAM HISTÓRICOS

O ato que reuniu cerca de 300 mil pessoas na noite de quinta-feira (20), no Centro do Rio, vai ficar na história da cidade, segundo o sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Primeiro por agregar participantes de todas as idades, raças, classes, credos e ideologias. Depois por ter conquistado uma de suas principais reivindicações. Mas, segundo o sociólogo, principalmente por demonstrar o peso que as redes sociais têm para o mundo tudo, inclusive o Rio de Janeiro.

“O Rio já foi palco de outras grandes mobilizações, como a promovida pelos royalties do petróleo. Mas esta foi de iniciativa dos jovens e não teve a participação de sindicatos, partidos políticos ou organismos de classe. E mostrou uma força muito grande, mesmo. O movimento, que teve como principal bandeira a redução das tarifas de ônibus, conquistou seu objetivo explícito.” Cano se disse impressionado com o grau de mobilização e organização obtido pelo ato. E destacou a tendência mundial de utilização das redes sociais para expressar a vontade da população.

“Antes era imprescindível a participação de partidos políticos, organismos como sindicatos, para atingir e atrair tantas pessoas. As pessoas sozinhas não tinham uma capacidade assim tão grande, não tinham essa organização. As redes sociais mudaram essa percepção e causaram um impacto nas pessoas. Elas agora percebem que têm como expressar suas opiniões, seus desejos, suas reivindicações. Elas têm o direito de se colocar diante dos fatos”, analisou Cano, dizendo que essa é uma tendência mundial, que começou no Egito e se alastrou por vários cantos do mundo.

Para o sociólogo, as depredações e violência são praticadas por grupos radicais, que querem colocar o movimento sob suspeição.

"São pessoas que escondem o rosto e aproveitam a multidão para cometer atos criminosos, coisas que não teriam coragem de fazer se estivessem sozinhas. São pessoas que querem desacreditar o movimento, que querem desmobilizar a opinião pública, que com atos lamentáveis deixam a população com medo, o que faz com que elas coloquem os objetivos do grupo sob suspeita", lamentou o sociólogo.

PONTOS LEVANTADOS PELOS ANALISTAS

1- Protestos se destacam pela falta de liderança e pela mobilização pela internet

2- Motivação é insatisfação difusa: contra injustiças, corrupção, serviços ruins e falta de representatividade de partidos e instituições

3- Governos demoraram para reagir, em alguns casos por não entender a motivação

4- Imagem do Brasil mudou para o mundo

5- Tolerância à violência policial diminuiu

6- Pauta inicial era mais à esquerda e depois incluiu reinvidicações da direita

7- Não é possível prever efeitos a longo prazo

* Com reportagem de Alba Valéria Mendonça, Ana Carolina Moreno, André Schröder, Giovana Sanchez, Rosanne D'Agostino e Simone Cunha, do G1 em São Paulo

http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/06/atos-sao-maior-mobilizacao-sem-lider-da-historia-brasileira-dizem-analistas.html

 

sábado, 22 de junho de 2013

64 - As Jornadas de Junho (Parte III)


Pessoal, segue uma entrevista do sociólogo e político Fernando Henrique Cardoso sobre os protestos dos últimos dias. A entrevista foi feita por Cassiano Elek Machado, da Folha de São Paulo.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO COMENTA OS PROTESTOS

A trilha sonora na sala do apartamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no final da tarde de quinta-feira, era composta por sirenes de carros e pelo barulho dos helicópteros que passavam a caminho dos protestos na avenida Paulista.

"As passeatas vão ser grandes?", perguntou à Folha. Aos 82 anos, completados na semana passada, o presidente está lançando o livro "Pensadores Que Inventaram o Brasil" (Companhia das Letras), sobre intelectuais que elaboraram grandes teorias sobre o país. Mas ele diz que nenhum teórico do passado poderia entender o que acontece hoje nas ruas.

Mais do que isso, ele acredita que os políticos não têm condições de compreender a "insatisfação genérica" da população e nem de capitalizá-la. "Tenho dúvidas se os partidos vão ter capacidade de captar tudo isso e transformar ao menos sua mensagem", diz Cardoso. Leia a seguir trechos da entrevista. *

O sr. acaba de lançar um livro sobre intelectuais que fizeram grandes interpretações do Brasil. Como estes pensadores podem ajudar a entender o que está acontecendo no país?

Fernando Henrique Cardoso - Eles não entenderiam e nem poderiam entender. Vivíamos num mundo das classes organizadas, ou desorganizadas querendo se organizar. Estas são manifestações que não são expressões de camadas organizadas. A primeira manifestação disso que eu vi foi em Paris em 1968. E isso ainda sem a internet.

Qual a maior mudança?

Muda muito. Aquele era um movimento a favor da autonomia e da liberdade. Na França, em 1968, eles não tinham linguagem para expressar o sentimento que tinham. Ou era foice e martelo, ou bandeira negra, e cantavam a "Internacional Socialista", que diz "De pé, ó famintos da terra". Não tinha faminto nenhum ali. Mas a França tinha sindicatos, partidos, organização. Agora, com a internet, e com a fragmentação maior de classes, é diferente. O comando é quase inexistente, vai se formar na rua. As demandas são muitas, o pretexto pode ser qualquer um. Esta situação me lembra um ensaio meu dos anos 1970 chamado "A teoria do curto-circuito".

Vivemos um curto-circuito?

Sim. O preço de ônibus foi um estopim. Ali está desencapado um fio. Mas aí pega fogo em outros. Não foi a classe dominada. Foram os jovens. São eles que estão gritando aí. Não foram os que não podem pagar. Estão gritando contra a injustiça em geral, vagamente. Juntam tudo: PEC 37, a corrupção, o custo dos estádios, dos transporte.

Qual o papel dos últimos governos nisso?

Nesses últimos anos, com a ascensão do Lula, o que ele propôs como ideologia? Vamos consumir o que é bom. Não é por que eu uso um macacão que não posso ter um automóvel. Criou um estilo de crescimento que é o oposto da China. Lá fazem poupança e investem. Aqui, consome-se sem investir. A rua está dizendo: não basta o consumo, quero mais. Não há razão objetiva. Não tem desemprego, ditadura ou opressão. Não é mundo árabe, Espanha ou Itália.

A Espanha e a Itália estão vivendo uma grande crise de representação política...

Aqui também. As pessoas não identificam nas instituições os canais que as levem ao que eles querem. Nenhum destes movimentos recentes gerou novas institucionalidades. O apelo do movimento aqui não é a ninguém. No mundo árabe querem derrubar o governo. Aqui não.

Vivemos algo próximo do que passou nas periferias de Paris em 2005?

Lá teve segregação racial e religiosa. Aqui não é isso. Quem está na rua não é a periferia. Aqui está todo mundo na rua. Não são sindicatos, não são grupos de trabalhadores organizados. Há uma insatisfação genérica.

Por que a insatisfação?

Porque a vida é pesada nas grandes cidades. Há sofrimento com o transporte, a poluição, a segurança. São problemas que afetam a todas as classes. O pobre leva duas horas no ônibus sofrendo. O rico fica irritado porque fica uma hora no carro. O rico está cercado de guardas. O pobre não tem guarda nenhum, mas os dois estão com medo.

Os governos recentes agravaram muito isso ao estimularem o consumo de carro. E deixaram a bomba na mão dos prefeitos. Mais carro e crédito. Talvez tenha aí também o começo da inflação e do esgotamento do crédito, agindo por baixo disso tudo. Mas o foco é um mal estar inespecífico. Não acho que qualquer partido possa, deva ou consiga capitalizar o movimento.

O sr. acredita que este movimento vai mudar a maneira de fazer política?

Alguma mudança ocasiona, mas não sei se os partidos vão ter capilaridade para sentir tudo isso e transformar ao menos sua mensagem e a ligação com fenômenos como as mídias sociais.

O sr. mencionou em entrevista recente que tinha dúvidas se as interações em mídias sociais poderiam ser concretizadas em ações políticas. Como avalia isso agora?

Não estamos vendo ações propriamente políticas. O grande teórico disso é o sociólogo espanhol Manuel Castells. Diz que a conexão entre redes e vida institucional não se processou, e ele tem dúvidas se vai se processar. Nenhum partido no Brasil tem ligação com isso. Os manifestantes não se sentem representados pelos partidos e nem sei se querem.

Como o sr. viu a imagem do Fernando Haddad junto com Geraldo Alckmin?

Acho compreensível. São símbolos do que está aí. É como a vaia da Dilma.

Lula também foi vaiado na abertura dos Jogos Pan-Americanos...

Mas foi diferente. No caso da Dilma, o que surpreende não é a vaia, mas a duração dela. Ao citar nome de autoridade em estádio é normal que haja vaia. Mas vaiaram muito tempo. Não sei se é contra a Dilma, em si, mas é contra o que está aí.

Há um desencantamento?

Sim. As pessoas melhoraram de vida, mas o governo é tão propagandista de uma maravilha virtual que há desencantamento. Este governo é tão favorável à propaganda que todos os nomes de programas de governo são "marketagem": "Minha Casa, Minha Vida", "Minha Casa Melhor". Criaram uma camada virtual de bem-estar que agora o pessoal questiona. Não sei se há desencantamento, mas há um descolamento. O dia a dia é mais duro do que o que o governo diz. Não há desemprego, mas não houve melhoria na qualidade do emprego, então a renda, mesmo com as melhorias, é pequena, insuficiente para fazer frente ao consumismo propagado. Por isso as pessoas entram no crédito. O governo está dando mais crédito, mais crédito, e endividando os bancos públicos. O que foi correto na crise virou política permanente.

E a crise de crédito vai estourar antes ou depois da eleição de 2014?

Quem sabe. Quem sabe...

Alguns cientistas políticos defendem que quando a oposição é fraca a saída é ir para as ruas. O sr. concorda que há um vazio na oposição?

Não há vazio. Basta assistir a TV Senado. A oposição é violenta o tempo todo. Só que morre ali. Não passa para a sociedade, não tem eco. Houve uma "parlamentarização" da vida política. Além disso, o governo fechou o debate. A Lei da Reforma do Petróleo não foi discutida por ninguém. A Dilma mudou a Lei da Mineração e ninguém sabe disso. E como este Congresso ficou fechado em si mesmo não temos mais regime de coalização. Agora é República Velha: governo e oposição. Não foi a oposição que diminuiu, foi tudo junto. A rua, nisso, pode ser que tenha ganho.

Mas existe uma possibilidade dos próprios partidos se reinventarem ou surgirão novos atores?

Espero que se reinventem. Mas os partidos precisam reestabelecer vínculos com a população. Para começar, têm de falar o que a população fala. Falei sobre drogas. Nenhum partido fala. Este é um tema real. O que são os temas reais? Um é o transporte. Outro é o direito do consumidor. Eu preferiria, talvez porque sou antigo, que existissem partidos capazes de captar e dialogar com estes problemas. Onde é que está o debate no Brasil? Na mídia, e só. E o governo ataca quem? A mídia.

E a mídia social cumpre um papel importante para o debate?

Para o debate, eu não sei. Para a mobilização, não tenho dúvida.

O sr. acompanha o Twitter, o Facebook e outras mídias sociais?

Twitter não. Facebook, um pouco. E alguns blogs. Não tenho tempo para acompanhar.

O sr. brinca em seu livro que desistiu de escrever o livro "Grande Indústria & Favela". Ao que pretende se dedicar agora?

Desde que saí da presidência publiquei seis livros em dez anos. Um deles, escrevi em inglês, o "The Accidental President of Brazil", que agora vou traduzir e lançar aqui no fim do ano. Mas o que ainda tenho de fazer? Ter, não tenho que fazer mais nada. Tenho 82 anos. Sendo generoso comigo mesmo terei mais cinco anos úteis. Depois, cansa. Anotei, quando estava na Presidência, quase todos os dias as coisas que achava. Tenho de deixar isso preparado para uma edição post-mortem. São umas 15 mil páginas. O único projeto que tenho no momento é este, que já retomei. Não penso em fazer outros livros.

Em seu livro recente, "Pensadores Que Inventaram o Brasil", o sr. trata de grandes retratos do Brasil. Por que não se faz mais interpretações gerais do país?

Como disse um rapaz que não conheço pessoalmente, o Marcos Nobre, este tipo de interpretação não cabe mais. Por trás destes livros, havia um projeto de nação. Estavam todos tentando ver como se fazia disso aqui uma nação. Hoje ninguém duvida: isto aqui é uma nação. Já não tem tanto uma obsessão sobre quem somos, por que somos. Nós somos. Estamos nas ruas, mas somos.

Já se sabe que no Brasil o Estado vai ser sempre importante, que o mercado vai ser sempre importante e que a sociedade civil é crescentemente importante. Já não tem dúvidas sobre quem será o propulsor.

Mas em um dos textos incluídos no livro o sr. fala que faz falta este tipo de livro panorâmico sobre o país...

Falei isso numa de 1993, há 20 anos. Até ali, ainda havia a ideia do projeto da nação. Era uma visão de um alguém iluminado que propõe a nação. Isso é antigo. O país já está aí e ninguém vai propor. Ele se faz e vai se fazendo. Não acho que seja cabível mais este tipo de grandes interpretações. A nação se diversificou muito e a universidade hoje estuda muito mais do que no passado muitas coisas.

O sr. está às vésperas de voltar a disputar uma eleição, depois de muito tempo. Vai concorrer na semana que vem a uma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Por que o sr. decidiu concorrer?

Há muito tempo eu resistia aos convites. Primeiro porque não sou literato, até que me convenceram que a Academia não era só para escritores. Ainda assim não queria, para não politizar. Agora estou longe do poder há tanto tempo, e todo mundo sabe que não quero mais o poder, que resolvi aceitar concorrer.

O sr. vai participar hoje nas manifestações?

Não (risos). Talvez eu vá até a rua. Mas não dá mais para ir a manifestações. Seria mal interpretado imediatamente.

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1299535-nenhum-partido-vai-ganhar-com-protestos-afirma-fhc.shtml. Acesso em 22 de junho de 2013