sábado, 22 de agosto de 2009

9 - Livro: A Ascensão do Dinheiro

Pessoal, uma dica de livro: A Ascensão do Dinheiro, de Niall Ferguson, um dos meus historiadores preferidos. Quem comenta é Benedito Sverberi na Veja (26 de agosto 2009)

Dinheiro também é cultura

Um livro demonstra que a inovação financeira sempre foi um fator central no avanço da civilização – e devolveà economia sua dimensão de aventura intelectual

Em novembro do ano passado, quando os mercados financeiros mundiais estavam mergulhados no pânico absoluto, a rainha Elizabeth da Inglaterra visitou a London School of Economics para inaugurar um novo prédio. Na ocasião, aproveitou para perguntar aos professores da tradicional escola de economia o motivo da irrupção de uma das mais profundas crises econômicas da história. "Mas como ninguém percebeu o que estava acontecendo?", questionou a rainha, que é famosa por sempre manter a fleuma e evitar ao máximo emitir opiniões sobre qualquer assunto. "Terrível." A rainha, é óbvio, não esteve sozinha ao pôr em dúvida o tirocínio dos economistas. Desde a eclosão da crise, eles e seus modelos teóricos caíram em desgraça. As ferramentas financeiras desenvolvidas nos últimos cinquenta anos foram classificadas de inúteis, nas críticas mais amenas, ou de perniciosas, nas mais acerbas. Também voltou com força a ideia de que as bolsas não são mais do que cassinos vulgares, nos quais espertalhões fazem fortuna à custa de inocentes. Escrito por um súdito da rainha, o historiador escocês Niall Ferguson, A Ascensão do Dinheiro (tradução de Cordelia Magalhães; Planeta; 424 páginas; 49,90 reais) ajuda a combater esse espírito. Primeiro, ao demonstrar que a inovação financeira sempre foi um fator central no avanço das sociedades – ou mesmo das civilizações. Em segundo lugar, por conferir à reflexão econômica a sua devida dimensão de aventura intelectual.

"Atrás de cada fenômeno histórico grandioso existe um segredo financeiro", afirma Ferguson. A Ascensão do Dinheiro traça a história das finanças desde os seus primórdios, na Mesopotâmia. E essa história, diz Ferguson, não deve ser vista apenas como um pano de fundo para os grandes acontecimentos da cultura e da política. Todos os fios estão entretecidos. Na transição dos séculos XIV e XV, por exemplo, o florescimento dos negócios bancários na Itália foi condição indispensável para que a Renascença tivesse seus esplendores. Da mesma forma, a criação das finanças corporativas foi alicerce para o império britânico, e a expansão da indústria de seguros e do crédito ao consumidor, um pressuposto da prosperidade americana no século XX. Ferguson, obviamente, não deixa de registrar os momentos de ruptura. Seria uma das "verdades perenes" da história financeira o fato de que, "mais cedo ou mais tarde, as bolhas sempre explodem". No balanço geral da história, contudo, os ganhos sempre se sobrepõem às perdas. Ferguson rejeita peremptoriamente a tese de que a pobreza decorre da exploração de homens simples por financistas predatórios. "A pobreza", diz ele, "tem muito mais a ver com a falta de instituições financeiras e de bancos do que com sua presença."

O livro de Ferguson também é valioso por apontar muitos dos personagens que, ao longo dos séculos, foram responsáveis pelas grandes inovações no mundo das finanças. São figuras como o matemático italiano Leonardo de Pisa, ou Fibonacci, responsável pela introdução do sistema decimal na Europa da Idade Média, ou o barão Nathan de Rothschild, um dos fundadores da dinastia de financistas que dominou o sistema bancário europeu no século XIX e aperfeiçoou a emissão de títulos de dívidas de países. Aparecem, por fim, alguns dos pais do pensamento financeiro contemporâneo, calcado na matemática e que deu base para o extraordinário crescimento daquilo que Ferguson chama de "Planeta Finanças", com sua miríade de títulos e derivativos. São acadêmicos ainda vivos e atuantes, como Harry Markowitz, pioneiro no estudo de diversificação de carteiras de investimentos, e Myron Scholes, que, junto com Fischer Black (já falecido), desenvolveu a fórmula de Black-Scholes, uma equação matemática utilizada para dar preço a ativos financeiros. Eles são os principais alvos daqueles que, na esteira da crise, falam no desmoronamento de uma parte considerável do edifício teórico da economia capitalista.

Ferguson ajuda a separar as críticas pertinentes ao pensamento financeiro moderno daquelas que são apenas mistificação ideológica. Lança luz, principalmente, sobre o campo em desenvolvimento da economia comportamental, que põe em xeque a abstração que está no centro da teoria financeira contemporânea: a ideia de que os indivíduos que atuam no mercado são sempre "racionais", ou seja, capazes de processar informações de maneira perfeita, de modo a tomar decisões que sempre maximizem os seus ganhos e respondam da melhor maneira aos seus interesses. Diz Ferguson: "Se o sistema financeiro tem um defeito, é que ele reflete e amplia aquilo que somos, como seres humanos. Os booms e quebradeiras são produto, na raiz, da nossa volatilidade emocional". A despeito da crise, as ferramentas financeiras desenvolvidas nos últimos cinquenta anos não serão abandonadas. Os mercados já não conseguem viver sem elas – e isso é bom, pois, apesar de suas falhas, elas foram fundamentais para democratizar o crédito e o consumo, cumprindo seu papel histórico de alimentar o desenvolvimento. Como Ferguson sugere, mais que derrocada, a palavra que melhor se aplica ao processo por que estão passando os mercados financeiros neste exato momento é evolução. Como em tantas outras vezes no passado.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

10 - Reflexões sobre a democracia (1)

O texto abaixo é do filósofo Denis Rosenfield e trata das diferenças entre a democracia liberal (constitucional) e a democracia totalitária (coletivista-estatista):

Há duas acepções da democracia em questão, a da democracia totalitária e a da democracia representativa ou constitucional. A democracia totalitária volta-se contra o espaço de liberdade próprio da sociedade, de suas regras, leis e instituições, o que é precisamente assegurado pela democracia representativa. Esta se baseia no exercício da liberdade em todos os seus níveis, da liberdade de imprensa, de expressão, de organização política, econômica até o respeito à divisão dos Poderes republicanos, passando pela consideração do adversário como alguém que compartilha os mesmos princípios. Disputas partidárias, por exemplo, são regradas e não desembocam no questionamento das próprias instituições, vale dizer, da Constituição. Nesse sentido, processos eleitorais se inscrevem neste marco mais geral, não podendo, portanto, ter a autonomia de subverter os princípios constitucionais, o ordenamento das instituições. Processos desse tipo são necessariamente limitados.

Nas democracias totalitárias temos um processo de outro tipo, em que o voto passa a ser utilizado de forma ilimitada, como se ele fosse por si mesmo, graças à manipulação de um líder carismático e de seu partido, o princípio do ordenamento institucional. Eis por que tal tipo de regime político tenta funcionar por meio de assembleias constituintes e referendos sistemáticos, num constante questionamento de todas as instituições, tidas por "burguesas" e expressão das "elites". A democracia totalitária não admite nenhuma limitação, nenhuma instância que a regre. Tende a considerar tudo o que se interpõe no seu caminho como não-democrático, ganhando o epíteto de "direita", "conservador" e "neoliberal".

Pode-se dizer que a democracia totalitária se caracteriza por essa forma de ilimitação política, tendo como "inimigo" a limitação própria das instituições sociais, das instâncias representativas. Ela terá como alvo a ser destruído todo espaço que se configure como independente, em particular aquele espaço que torna possíveis as liberdades individuais e o processo de livre escolha. Não pode suportar um Estado de Direito, baseado precisamente nessas liberdades. Ou seja, a democracia totalitária não pode suportar a democracia liberal, também dita representativa ou constitucional, pelo fato de assegurar a existência de leis, de Poderes e de instituições, que não se podem adequar a tal processo de mobilização totalitária.

Eis por que as democracias totalitárias partem para questionar toda forma de existência democrática, social, que não se estabeleça conforme os seus desígnios. Os meios de comunicação que não aceitem ser instrumentalizados passam a ser considerados inimigos que devem ser abatidos, seja por diminuição de verbas publicitárias, seja por processos judiciais, seja por mecanismos de controle ou de banimento dos mais diferentes tipos. O contestador deve ser silenciado, pois não obedece aos ditames do "povo", de tal "maioria" politicamente constituída. As esferas que asseguram a livre iniciativa individual são progressivamente circunscritas e limitadas, de modo que as pessoas sintam medo e passem a agir de forma não autônoma, como se assim houvesse uma conformidade ao que é "popular". O Estado de Direito, por sua vez, é cada vez mais menosprezado, seja por não-obediência à legalidade existente, seja pela modificação incessante de leis e normas constitucionais, seja por atentados cometidos contra os princípios mesmos de uma sociedade livre.

A democracia totalitária volta-se contra os direitos individuais, contra os direitos das pessoas de não se dedicarem aos assuntos políticos, de se contentarem com seus afazeres próprios. Ela se volta contra as instituições por estas interporem um limite ao seu desregramento. Ela se volta contra a propriedade privada tanto no sentido material, de bens, quanto imaterial, de liberdade de escolha. Ela se volta contra todo aquele que reclame pela liberdade. Eis a questão com que nos defrontamos na América Latina. A clareza dos conceitos é uma condição da verdadeira democracia.

Texto completo em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090803/not_imp412618,0.php