sexta-feira, 24 de abril de 2009

12 - A Questão do Oriente

Pessoal, estou postando um texto mais detalhado da Questão do Oriente. 


A Questão do Oriente

1. O Império Turco Otomano

Os turcos otomanos, originários da Ásia Central e seguidores do islamismo, criaram um dos mais poderosos impérios da Idade Moderna. Com capital em Constantinopla (que os turcos haviam tomado em 1453 depois de destruírem o que restava do Império Bizantino), o Império Otomano em seu apogeu no século XVI dominava os Bálcãs, a Armênia, parte do Cáucaso e a maior parte dos países árabes do Oriente Médio e do Norte da África. Entre os territórios que os turcos controlaram até a Primeira Guerra Mundial estavam as três principais cidades santas do Oriente Médio: Meca e Medina (sagradas para os muçulmanos) e Jerusalém (sagrada para os judeus, cristãos e muçulmanos). Em razão do seu tamanho, força militar e localização estratégica, o Império Turco Otomano foi a maior potência muçulmana do mundo em 1520-1914, embora a maioria dos seus súditos nos Bálcãs e na Armênia fosse constituída por cristãos – fator que contribuiu, no século XIX, para a desestabilização do poder turco. Politicamente, o império era caracterizado pelo despotismo, com uma monarquia absolutista encabeçada pelo sultão, considerado também califa (líder e protetor da ummah, a comunidade islâmica). A corte do sultão (que incluía o Grão-Vizir ou Sadrazam, espécie de primeiro-ministro) era conhecida como a Sublime Porta.

2. O declínio do Império Otomano e a Questão do Oriente



O expansionismo turco se esgotou no século XVII e, a partir do final do século XVIII, o Império Otomano entrou em processo de decadência em função de suas deficiências internas: uma sociedade tradicional, com uma ordem social baseada em distinções religiosas, que não conseguia acompanhar o ritmo de modernização do Ocidente; economia agrária com baixa produtividade e atraso tecnológico; despotismo da Sublime Porta e dos governadores (alguns, na prática, independentes do poder central), burocracia corrupta, administração ineficiente, tributação distorcida sufocando a maioria da população, exército obsoleto, banditismo endêmico, conservadorismo cultural e baixa mobilidade social. Na segunda metade do século XIX os problemas financeiros do império se agravaram por causa do aumento dos gastos militares (guerra contra a Rússia em 1853-1856), dos tratados comerciais com as potências européias que reduziram o protecionismo (e a arrecadação alfandegária) e das dificuldades em pagar a crescente dívida externa. Reformas modernizadoras foram tentadas na década de 1870, mas fracassaram, sobretudo por causa da resistência dos grupos mais conservadores. O resultado foi a Questão do Oriente – as incertezas sobre o futuro do decadente Império Otomano (o “velho doente da Europa”) e os problemas internacionais gerados por sua desintegração, como as disputas entre as grandes potências européias pelos territórios turcos no Oriente Médio, no Norte da África e nos Bálcãs.

2.1 A desintegração do Império Otomano

A crise do Império Otomano e seu processo de desintegração começou na década de 1770, mas foi agravada cem anos depois, nos anos de 1870, com a intensificação do nacionalismo dos povos dominados pelos otomanos e do imperialismo das grandes potências européias.

(a) Os movimentos nacionalistas pela independência dos povos cristãos

Nos Bálcãs foi o caso dos gregos, eslavos (sérvios, bósnios, montenegrinos, búlgaros) e romenos. No Oriente Médio foi o caso dos armênios. Frequentemente, a luta armada desses povos e a repressão otomana assumiram a forma de conflitos étnicos, acompanhados por uma grande violência sobre a população civil. O que se convencionou chamar de limpeza étnica – o extermínio de uma etnia pela rival – foi amplamente praticado pelos dois lados. A Grécia conseguiu ficar independente em 1829 (reconhecida pela Sublime Porta em 1832), mas continuou reivindicando mais territórios dominados pelos turcos. Entretanto, as revoltas nacionalistas dos eslavos, sobretudo sérvios e montenegrinos, nas décadas de 1810 e 1860 fracassaram e a dominação turca continuou reconhecida internacionalmente sobre seus territórios. Na década de 1870, Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Romênia e Bulgária nos Bálcãs, e a Armênia, na Ásia Menor, ainda eram províncias do Império Otomano com graus variados de autonomia.

(b) O imperialismo das grandes potências européias

Principalmente da Rússia, interessada em conquistar territórios no Sudeste Europeu, para obter acesso ao Mar Mediterrâneo (como Constantinopla e o Estreito de Dardanelos entre a Europa e a Ásia), e no Cáucaso (como a Geórgia), para poder penetrar no Oriente Médio e alcançar o Golfo Pérsico. Nos Bálcãs, a Rússia se apresentava como protetora dos povos eslavos locais, com os quais compartilhava um mesmo tronco lingüístico (a família de línguas eslavas) e uma mesma religião (cristã ortodoxa), idéia que foi a base do pan-eslavismo – a defesa da união, cooperação e solidariedade dos povos eslavos sob a liderança da Rússia. A política russa de penetração no Oriente Médio envolvia também se posicionar como a protetora da comunidade cristã (principalmente dos ortodoxos) e dos seus locais sagrados na Palestina e na Síria. A Áustria-Hungria também procurou expandir seu império à custa de territórios balcânicos controlados pelos otomanos (como a Croácia no final do século XVII e a Bósnia no final do século XIX). A França buscou ampliar seu controle no Mediterrâneo dominando Estados-vassalos do Império Otomano no Norte da África (Argélia, Tunísia). Com a Rússia, disputava também a condição de defensora dos cristãos da Palestina e Síria. A Itália igualmente desejava territórios otomanos no Norte da África e na Ásia Menor. A Grã-Bretanha, em princípio, estava mais interessada na preservação e estabilidade do Império Otomano, que serviria de barreira contra a expansão das outras potências européias no Oriente Médio, região que separava a Europa da Índia, a principal colônia britânica. Na maioria das vezes, o governo em Londres utilizou a diplomacia para frear o imperialismo das outras potências sobre os otomanos e negociar arranjos de redistribuição de territórios que não implicassem no desabamento completo do império turco ou em uma drástica alteração do equilíbrio do poder na Europa. No entanto, quando a diplomacia falhava ou algum problema interno dos domínios otomanos ameaçava interesses estratégicos da Grã-Bretanha, o governo britânico recorria a guerra, como na intervenção ao lado dos gregos na Guerra de Independência da Grécia (1821-1829) e ao lado dos otomanos na Guerra Turco-Egípcia (1832-1841) e na Guerra da Criméia (1854-1856, contra a tentativa russa de tomar territórios turcos).

(c) Principais momentos da Questão do Oriente a partir da década de 1870



1870-1875. Crescentes problemas econômicos. Os gastos militares (modernização da marinha), a corrupção das autoridades, tratados comerciais com as potências européias que reduziram o protecionismo (e a arrecadação alfandegária) e o aumento da dívida externa levou o Estado otomano à bancarrota em 1875. Más colheitas em 1873, acompanhadas pelos efeitos da Depressão Mundial iniciada na década de 1870 agravaram a situação econômica, aumentando a pressão por reformas, defendida pelo movimento político dos Jovens Otomanos (intelectuais nacionalistas liberais).

1875-1876. Revolta Eslava nos Bálcãs. Os cristãos da Bósnia e da Bulgária, sobretudo camponeses, rebelaram-se contra as taxas e os mal-tratos praticados pelas autoridades islâmicas locais, que não adotaram as reformas prometidas pela Sublime Porta. Em 1876, a Sérvia e Montenegro, auxiliados por voluntários russos, aderiram à revolta e declararam guerra ao Império Otomano. Os turcos conseguiram sufocar a rebelião com grande violência. Na verdade, os dois lados (rebeldes eslavos e forças otomanas) cometeram massacres, mas a repressão desencadeada pelo governo turco foi mais divulgada no Ocidente, causando indignação da opinião pública e dos governos europeus.

1876. Reforma liberal. Em meio às revoltas dos eslavos, estourou uma crise política e, em único ano (1876), o Império Otomano conheceu três sultões consecutivos, dois deles depostos. O terceiro, Abdulhamid II, em um primeiro momento cedeu às pressões por reformas e aceitou uma constituição liberal, que estabeleceu um parlamento e reduziu a autoridade do monarca, inaugurando o período conhecido como Primeira Era Constitucional (1876-1878). Na visão dos defensores da constituição (os Jovens Otomanos), a reforma política seria o primeiro passo para a efetiva modernização e salvação do Império Otomano.

1877-1878. Guerra Russo-Turca. Sob o pretexto de proteger os eslavos nos Bálcãs contra a violência da repressão turca, a Rússia declarou guerra ao Império Otomano (abril, 1877) e invadiu a Romênia, a Bulgária e o Cáucaso. Em janeiro de 1878, com as forças russas ameaçando Constantinopla, o governo turco pediu o armistício. A Rússia iniciou as negociações de paz, mas continuou avançando. Criticado pelo desastre militar, Abdulhamid II suspendeu a constituição e restaurou o despotismo (fevereiro 1878). Alarmada, a Grã-Bretanha enviou uma frota para impedir que os russos tomassem a capital otomana. A Rússia deteve o seu avanço, mas impôs aos turcos o Tratado de San Stefano (março 1878), um acordo de paz que reorganizou os Bálcãs visando a ampliação do poder russo na região e no Cáucaso: a Rússia anexou parte da Romênia (sul da Bessarábia) e da Armênia (província de Kars); a Sérvia e Montenegro ampliaram seus territórios e ficaram independentes; uma Grande Bulgária (estendendo-se do Mar Negro ao Egeu, incluindo a Macedônia e Rumélia Oriental) foi estabelecida como um principado autônomo sob ocupação militar russa; e a Áustria-Hungria ocupou a Bósnia-Herzegovina e o Sanjak de Novibazar (parte do atual Kosovo). A Grã-Bretanha, no entanto, opôs-se ao fortalecimento da Rússia nos Bálcãs e pressionou pela revisão do acordo de paz.

1878, junho-julho. O Congresso de Berlim. Organizado sob mediação do chanceler alemão Bismarck, o Congresso de Berlim confirmou, com o Tratado de Berlim, a independência da Sérvia, de Montenegro e da Romênia, os ganhos territoriais russos e o controle austro-húngaro sobre a Bósnia-Herzegovina e o Sanjak de Novibazar. Mas a decisão mais importante foi sobre a Bulgária, que foi dividida: o Principado Autônomo da Bulgária, com o território reduzido e governado por um príncipe não-russo, eleito por uma assembléia búlgara e aprovado pelas grandes potências; a Macedônia, com uma parte voltando a ser controlada pelo Império Otomano e outra parte incorporada à Sérvia; e a Rumélia Oriental, que também retornou ao domínio otomano como província autônoma. Em troca do apoio que deu ao governo turco, a Grã-Bretanha recebeu Chipre. O Tratado de Berlim agravou os problemas balcânicos ao deixar a Rússia, a Bulgária, a Sérvia e o Império Otomano insatisfeitos.

1881. A França ocupa a Tunísia. O pretexto foi conter os ataques de tribos tunisianas na fronteira com a Argélia, colônia francesa. A Tunísia virou um protetorado da França.

1882. A Grã-Bretanha ocupa o Egito. Em 1859-1869 os franceses construíram o Canal de Suez no Egito, ligando o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho e ao Índico, encurtando o caminho entre a Europa e a Ásia. O governo egípcio era o maior acionista do Canal, seguido pela França. Mas dificuldades financeiras (gastos excessivos na tentativa de modernizar o país) levaram o Egito a vender suas ações para a Grã-Bretanha em 1875. O controle estrangeiro sobre o Canal e a crescente presença de ocidentais causou um grande ressentimento entre os egípcios, sobretudo entre os militares nacionalistas. Distúrbios populares antiocidentais estouraram em 1881-1882. Temendo perder o controle sobre o Canal, a Grã-Bretanha invadiu o Egito em 1882 e ocupou o país, transformando-o em um protetorado.

1885. Unificação da Bulgária. Uma revolta na Rumélia Oriental resultou em sua união com a Bulgária, sob protestos da Rússia (insatisfeita com o governo do príncipe Alexandre von Battenberg) e da Sérvia (que temia o fortalecimento búlgaro).

1885-1886. Guerra Servo-Búlgara. A Sérvia exigiu territórios búlgaros como compensação pelo crescimento da Bulgária. A Sérvia foi derrotada

1896. Revolta em Creta. Os gregos locais fizeram um levante contra o domínio otomano. A revolta serviu de pretexto para a intervenção da Grécia, que entrou em guerra contra os turcos.

1897. Guerra Greco-Turca. Os gregos fracassaram em tomar territórios otomanos e um acordo de paz foi assinado.

1899. Protetorado britânico no Kuwait. Parte autônoma da província otomana de Basra, no sul do Iraque, o Kuwait era governado pelo sheik árabe Mubarak al-Sabah, o Grande. As tentativas otomanas de ampliar o controle sobre o país levaram o sheik a se aproximar da Grã-Bretanha. Os britânicos estabeleceram um protetorado no Kuwait, que formalmente continuou sendo território otomano – situação confirmada na Convenção Anglo-Otomana de 1913.

1903. Revolta da Macedônia. Liderada por grupos favoráveis à unificação com a Bulgária. Os otomanos sufocaram a insurreição.

1906. Formação do Comitê de União e Progresso (CUP). Organização política revolucionária nacionalista dos Jovens Turcos (herdeiros políticos dos Jovens Otomanos), reunindo estudantes, intelectuais e jovens oficiais. Objetivos: restauração da Constituição de 1876 e reformas modernizadoras para salvar o império do colapso.

1908, julho. Revolução dos Jovens Turcos. Começou com a revolta militar do III Exército turco na Macedônia liderada por Enver Pasha, membro do CUP. A revolta se espalhou pelo império e o sultão Abdulhamid II foi obrigado a restaurar a Constituição de 1876, inaugurando a Segunda Era Constitucional (1908-1920). Contudo, o CUP não conseguiu organizar um governo estável, gerando incertezas sobre a viabilidade do novo regime em um quadro de crescente violência social (banditismo, conflitos étnicos e religiosos). A instabilidade deixou o império mais vulnerável, favorecendo o separatismo e os interesses expansionistas dos vizinhos, que buscaram agir o mais rápido possível antes que surgisse um governo nacionalista forte capaz de restaurar o poder otomano.

1908, setembro. A Grécia anexa Creta. Fortaleceu o movimento de criação da “Grande Grécia”.

1908, outubro. Independência da Bulgária. Proclamada pelo príncipe Ferdinando I, que assumiu o título de czar da Bulgária.

1908, outubro. A Áustria-Hungria anexa a Bósnia-Herzegovina. Causou a crise da Bósnia. A Sérvia, que reivindicava a Bósnia-Herzegovina (território otomano ocupado pelos austro-húngaros desde 1878) visando criar a “Grande Sérvia”, viu seus planos serem frustrados. O distrito turco do Sanjak de Novibazar, que a Áustria-Hungria também tinha ocupado em 1878 e que era igualmente reivindicado pelos sérvios, foi devolvido aos otomanos. A Rússia, inicialmente, apoiou a Áustria-Hungria esperando receber em troca vantagens sobre o Estreito de Dardanelos. Contudo, a Grã-Bretanha barrou os planos dos russos, que se sentiram enganados pela Áustria-Hungria. A Rússia passou a dar apoio à Sérvia e a Alemanha confirmou seu apoio à Áustria-Hungria.

1909. Tentativa de contra-revolução no Império Otomano. Grupos conservadores, apoiados pelos fundamentalistas islâmicos e por Abdulhamid II, assumiram o controle de Constantinopla com o objetivo de restaurar o absolutismo e impor uma legislação religiosa baseada na sharia (leis islâmicas). Os revolucionários do CUP recuperaram o poder, depuseram Abdulhamid II e o substituíram por um novo sultão, Mehmed V.

Um agravante nessa questão foi aproximação da Alemanha do Império Otomano, iniciada na década de 1880, depois que os turcos perderam territórios para a França (Tunísia, 1881) e a Grã-Bretanha (Egito, 1882) e sentiram-se ameaçados pelas pretensões russas por Constantinopla e pelo Cáucaso. Os alemães estabeleceram uma missão militar para reorganizar o exército turco (1883) e, em troca de empréstimos ao governo otomano, obtiveram concessões (1899 e 1902) para construir a Ferrovia Berlim-Bagdá – na verdade, estender a ferrovia Berlim-Constantinopla para Bagdá e Basra, próxima do Golfo Pérsico. A penetração alemã no Império Turco Otomano e no Oriente Médio precipitou a aliança entre a Grã-Bretanha e a Rússia em 1907, simbolizada pela divisão da Pérsia (Irã) entre as duas potências.

Bibliografia

KARSH, Efraim e KARSH, Inari. Empires of the Sand - The Struggle For Mastery in the Middle East 1789-1923. Cambridge, Harvard University Press, 1999.

MACFIE, A. L. The Eastern Question 1774-1923. Londres, Longman, 1996.

sábado, 18 de abril de 2009

13 - Reflexões sobre a democracia (2)

Democracia: princípio ou arranjo?

O texto abaixo é do filósofo Olavo de Carvalho:

“Democracia integral” é indefinível, porque é autocontraditória.

Todo principiante no estudo da teoria política tem de saber, desde logo, que a democracia não é uma substância, uma coisa, mas uma qualidade que se tenta impor a uma substância preexistente, isto é, à sociedade tal como estava antes do advento da democracia. Tem de saber também, em conseqüência, que a democracia não é uma quantidade fixa, mas uma proporção – e que, por isso mesmo, não pode ser “integral”. A democracia constitui-se essencialmente de uma limitação mútua entre os poderes, o que subentende que esses poderes existam e que cada um deles não seja integralmente capaz de limitar-se a si mesmo. Todos os teóricos da democracia, mesmo os mais entusiastas, sempre ressaltaram que ela é um estado de equilíbrio instável, incapaz de fixar-se na perfeição do equilíbrio puro subentendido na palavra “integral”. A democracia não é um princípio universal, mas um arranjo pragmático. Princípios universais podem ser aplicados ad infinitum sem levar jamais a contradições. Por exemplo, o próprio suum cuique tribuere, ou a noção de que a responsabilidade de um ato incumbe a quem o cometeu e não a outra pessoa. Você pode aplicar indefinidamente esses princípios a todos os casos possíveis e imagináveis, nunca eles levarão a situações paradoxais e sem saída.

Bem diferentes são os arranjos pragmáticos, cuja aplicação é limitada por definição e que, estendidos para além do seu campo próprio de aplicação, se autodestroem ou se convertem nos seus contrários. A democracia é um dos exemplos mais óbvios dessa distinção, e isso é mesmo uma das primeiras coisas que o estudante de teoria política tem de aprender. Em toda democracia há, por definição, uma infinidade de abusos antidemocráticos. Suprimi-los por completo, como subentendido na noção de “democracia integral”, exigiria a instalação do controle social perfeito, portanto a eliminação da própria democracia. A democracia reside precisamente na busca permanente da compensação mútua entre fatores que, em si, não são democráticos. Isso quer dizer que enormes coeficientes de autoritarismo subsistem necessariamente dentro de qualquer democracia e que sem eles o próprio conceito de democracia não faria sentido. A “democracia integral” coincidiria em gênero, número e grau com a ditadura.

Em segundo lugar, democracias não existem no ar, mas em unidades políticas soberanas que coexistem com outras unidades políticas soberanas. Um regime de um país só pode ser democrático para dentro. Não pode conceder aos cidadãos e governos de outros países os mesmos direitos e garantias que dá aos nacionais. Isso implicaria a sua dissolução imediata. Uma “democracia integral” pressuporia a inexistência de fronteiras. Tratados internacionais podem, por sua vez, retroagir sobre as leis internas, diminuindo o coeficiente de direitos desfrutados pelo cidadão da democracia. Por outro lado, o governo mundial, necessário à implantação da “democracia integral”, seria também contraditório com a noção de democracia, por ser inatingível à fiscalização direta de todos os eleitorados locais – a não ser na hipótese de uma humanidade ilimitadamente poliglótica.

A existência mesma de um poder legislativo, que é um componente essencial da democracia, prova que ela não pode ser integral. Se você tem de estar continuamente produzindo novas leis, é porque as anteriores não produziram a “democracia integral”. Se a produzirem, a subseqüente supressão do legislativo a transformaria ipso facto em ditadura. Basta isso para mostrar como as idéias de pureza e democracia são radicalmente incompatíveis, não apenas no baixo mundo dos fatos, mas na própria esfera dos conceitos absolutos.

Olavo de Carvalho. A Proibição de Comparar: Brasil-Mentira III. Diário do Comércio, 17 de abril de 2009 in http://www.olavodecarvalho.org/semana/090417dc.html

quarta-feira, 8 de abril de 2009

14 - Reflexões sobre a democracia (3)

Democracia, vontade popular e valores culturais

O texto abaixo é do jornalista Reinaldo Azevedo:

Nem o povo tem direito de golpear a democracia. Alguns relativistas vieram, então, com suas bizarrices: “Oh, mas os governos são construções históricas, não caem do céu!” Ora, não me digam! Ou então: “Mas o que é a verdadeira democracia?” — estes acreditam que ou a verdade cai do céu, ou tudo é falso.

É claro que a democracia representativa é uma construção histórica. Ela não se assenta apenas na observância das leis (estado de direito), posto que é possível haver “ditaduras de direito” — ou seja: elas só esmagam o cidadão segundo o código discricionário e transformam em leis as proibições as mais estúpidas. A democracia também não se assenta apenas na vontade da maioria, posto que é possível haver regimes violentos que contam com apoio popular, embora suas práticas sejam condenáveis (voltaremos a essa palavra; não se esqueçam dela): os fascismos europeus da década de 40 do século passado são clássicos no gênero; é possível que o Taleban, no Afeganistão, tivesse o apoio da maioria.

Então vejam: o estado de direito não basta para fazer uma democracia. O estado de direito mais a vontade da maioria não bastam para fazer uma democracia. Alguém pode indagar: “E se acrescentarmos aí, Reinaldo, a divisão e independência entre os Poderes? O conjunto basta para fazer uma democracia?” Melhora muito, meus caros. Mas ainda não basta. Digamos — não é o caso, mas digamos! — que o Legislativo e o Executivo na Venezuela, hoje, fossem independentes. Se os três Poderes continuassem irmanados na defesa das mesmas teses ditas “bolivarianas”, esmagando a divergência, não se teria democracia. Mas lhes dou uma exemplo ainda mais óbvio.

As teocracias islâmicas, por exemplo, não podem ser democracias. Na maioria delas, há estado de direito, com respeito à vontade da maioria, e os Poderes até são independentes — dentro da independência possível. Ocorre que a religião se torna um redutor de todas as demandas, e seu valor deita sua sombra sobre a sociedade.

Escrevi a palavra-chave: VALOR. Uma democracia tem de estar assentada no estado de direito, na vontade da maioria, na separação e independência entre os Poderes e nos VALORES. Pergunto: é democrático que a maioria decida que nem todos são iguais perante a lei? É democrático que a maioria ache normal que a lei seja posta a serviço do grupo governante da hora? É democrático, para ficar nos termos do senador Cristovam, que o povo decida que não quer mais um Parlamento? Pode haver democracia islâmica, por exemplo, dado que as mulheres, sob o Islã (ou, se quiserem, sob os vários “Islãs”), não têm os mesmos direitos dos homens? "Ah, não se trata de uma questão de direitos, mas de cultura..." Pois é! Eu fico com os direitos...

A tese de que a vontade da maioria é a verdadeira força da democracia é autoritária e filoditatorial. Eu realmente acredito que alguns valores sociais e morais são patrimônios incorporados à evolução da civilização, como as vacinas por exemplo — e, a exemplo delas, nos fazem viver melhor. Eu realmente acredito que alguns valores da chamada cultura ocidental — como tolerância, respeito a minorias, igualdade perante a lei, liberdade religiosa — a fazem superior a outras realidades culturais.

Como diria Barack Hussein Obama, eu não estou em guerra com o Islã — nem com ninguém. Eu sou, isto sim, é um defensor radical, intransigente mesmo, desses valores. E, com efeito, acredito que os homens de toda a terra viveriam melhor sob o seu abrigo.

Sob este ponto de vista, reconheço meu lado quase jesuítico. Acho que os valores da democracia têm de ser espalhados pelos quatro cantos da terra. E creio que devem ser devidamente contidos aqueles que, mesmo estando entre nós, pretendem sabotá-los. Porque o regime de liberdades pode tolerar quase tudo — só não pode tolerar os intolerantes.

Houvesse um símbolo ou emblema para o regime democrático, como há para o cristianismo, por exemplo, eu não teria dúvida de nele inscrever a frase "In hoc signo vinces".

Reinaldo Azevedo. Textos de Formação - Mas o que é essa tal de democracia ? in http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/