domingo, 20 de julho de 2014

82 - Novo avanço do autoritarismo

Saiu no jornal O Estado de S Paulo um interessante artigo sobre o avanço do autoritarismo nos dias de hoje, lembrando o contexto pós-Primeira Guerra Mundial, entre outros momentos da história do século XX.

Os autoritários estão vencendo?  

MICHAEL , IGNATIEFF, THE NEW YORK REVIEW OF BOOKS - O Estado de S.Paulo
20 Julho 2014 | 02h 03

Democracia liberal está em crise e precisa de reformas para vencer a luta desigual travada contra as novas formas de autoritarismo

Nos anos 30, viajantes voltavam da Itália de Mussolini, da Rússia de Stalin e da Alemanha de Hitler elogiando o sentimento de interesse comum que viram, em comparação com suas democracias, que pareciam fracas e ineficientes. Hoje, as democracias vivem um período parecido de inveja e desânimo.


Seus rivais autoritários irradiam confiança. Nos anos 40, ocidentais iam à Rússia para admirar as estações do metrô de Moscou. Hoje, vão à China para tomar o trem-bala de Pequim a Xangai e voltam se perguntando por que as autocracias conseguem construir ferrovias enquanto as democracias levam 40 anos para decidir que não podem nem sequer começar.

Pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, o avanço do constitucionalismo democrático parou. Para cada Estado africano onde as instituições democráticas estão firmes, há um em que a democracia agoniza. No México e na Colômbia, a democracia é ameaçada pela violência, enquanto a Argentina luta para se livrar do peso morto do peronismo. No Brasil, os milhões que protestaram em 2013 não mudaram o clientelismo em Brasília. No Oriente Médio, a democracia teve um ponto de partida na Tunísia, mas na Síria prevalece o caos, no Egito impera o autoritarismo e nas monarquias, o absolutismo está em ascensão.

Na Europa, as elites insistem que o remédio para as mazelas do continente é mais integração, enquanto um terço do eleitorado diz que quer menos. Da Hungria à Holanda, a direita antieuropeia ganha terreno. Na Rússia, o momento democrático dos anos 90 parece tão distante quanto o breve interlúdio constitucional, entre 1905 e 1914, sob o czar.

O recente aperto de mão entre Vladimir Putin e Xi Jinping celebrou mais do que um acordo sobre gás. Ele anunciou o surgimento de uma aliança de Estados autoritários com uma população combinada de 1,6 bilhão no vasto espaço eurasiano que se estende da fronteira polonesa ao Pacífico, do Ártico ao Afeganistão.

Essa zona inclui Estados clientes recalcitrantes, como a Coreia do Norte, e despotismos patriarcais, como as repúblicas muçulmanas da ex-União Soviética. Inclui também súditos menos cordatos, como Geórgia, Armênia e Moldávia, cujo povo quer a democracia, mas ouve de seus líderes autoritários para deixarem seus sonhos de lado. É na Ucrânia, porém, que a batalha por influência é travada entre as democracias desmoralizadas do Ocidente e o arquipélago autoritário. Se o país for impedido de escolher seu caminho, alguns Estados que margeiam a Rússia também serão impedidos de fazê-lo.

O conflito entre autoritarismo e democracia não é uma nova Guerra Fria, dizem, porque os novos autoritários não têm uma ideologia expansionista como o comunismo. Isto não é verdade. O comunismos pode ter acabado como sistema econômico, mas como modelo de dominação do Estado ele está muito vivo na China e no Estado policial de Putin.

Não falta a esse novo autoritarismo uma estratégia econômica. Seu objetivo é uma forma familiar de modernização que aproveita os benefícios da globalização sem sacrificar o controle político e ideológico sobre suas populações. Seu modelo econômico é o capitalismo de Estado fixador de preços e seu sistema legal é o governo (em geral corrupto) por decretos. Sua ética rejeita o universalismo moral em favor da alegação de que as civilizações antigas são mundos morais autossuficientes. A perseguição a gays, portanto, não é um excesso passageiro, mas é intrínseca a suas visões de si mesmas como baluartes contra o individualismo ocidental.

As visões estratégicas de Rússia e China podem derivar de experiências históricas diferentes, mas as mensagens que elas extraem de suas histórias são parecidas. Ambas se apoiam nas humilhações que sofreram nas mãos do Ocidente e não aceitam a democracia liberal como modelo. Ambas insistem que sua experiência de revolução no século 20 pedia um regime centralizado com punho de ferro.

As variantes chinesa e russa de modernização autoritária se apoiam em recursos diferentes. Os dois países continuam sendo competidores geoestratégicos, mas ambos veem boas razões para alinhar seus interesses de médio prazo: as duas votam juntas no Conselho de Segurança, perseguem dissidentes e apoiam a ditadura da Síria.

Os novos autoritarismos oferecem às elites da África e da Eurásia um caminho alternativo para o desenvolvimento: crescimento sem democracia e progresso sem liberdade. Este é o canto de sereia que algumas elites políticas africanas, latino-americanas e asiáticas querem ouvir.

Diante desses autoritários, os EUA oferecem um exemplo desanimador. Durante dois séculos, seu mecanismo constitucional foi admirado. Agora, nas mãos de políticos polarizadores, ele causa paralisia. Os admiradores dos EUA aceitam que o dinheiro pese na política de Washington, mas sua justificativa ideológica é perversa.

Para cidadãos de outras democracias liberais, a doutrina da Suprema Corte de que o dinheiro em política merece as proteções concedidas à liberdade de expressão parece uma insanidade doutrinária. Para outros democratas, ele é poder puro e simples - e não expressão - e precisa ser controlado para os cidadão continuarem livres.

É difícil defender a democracia liberal com muito entusiasmo no exterior quando ela funciona tão precariamente em casa. Esse pensamento levou Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations, a defender no artigo Foreign Policy Begins at Home que os EUA precisam pôr sua própria casa em ordem antes de promover seus valores e instituições no exterior.

Colocar as finanças públicas sob controle, reformar leis eleitorais, investir em educação são um chamado à ação. No entanto, tudo isso parece uma possibilidade remota no clima de hostilidade partidária vigente. A democracia só pode funcionar se a política for conduzida entre adversários. Neste momento, a Constituição dos EUA é bloqueada por uma política de inimigos.

Para Barry Posen, cientista político do MIT, o problema americano não é a disfunção democrática em casa, mas sua extensão para fora. Segundo ele, os EUA mergulharam em guerras que não deveriam ser travadas e promoveram objetivos, como diretos humanos, democracia e construção nacional, que não poderiam realizar.

Ao gastarem mais em defesa, permitiram a vida mansa de aliados europeus e uma "direção arriscada", sobretudo a construção de assentamentos por Israel. Se os EUA cortarem seus gastos em defesa, segundo Posen, poderão obrigar seus aliados a se defenderem e liberar US$ 75 bilhões por ano para gastar na reconstrução do país. Essa é uma recomendação surpreendente vindo de um realista conservador, mas indica o quanto a crítica dos gastos militares une conservadores e progressistas. Os dois extremos do espectro político estão convergindo para a "contenção" como princípio organizador.

Contenção significa triagem. Significa racionalizar o uso de forças militares para proteger os interesses vitais: ficar fora de guerras ou desastres humanitários de outros povos; recusar-se a promover democracia ou direitos humanos em lugares onde eles não criarão raízes; obrigar aliados a arcar mais com o fardo de sua própria defesa; e desistir de moldar os bens públicos globais e a ordem pública global.

O recente discurso do presidente Barack Obama em West Point sugere que ele está dando ouvidos a uma nova doutrina de contenção. Ele ainda dá crédito à promoção de direitos humanos e à democracia, mas o verdadeiro foco de sua política externa é trazer os soldados para casa e se concentrar na construção nacional.

A contenção capta um sentimento, tanto em conservadores como em progressistas, de que os EUA já não têm o poder de moldar a ordem mundial como faziam. Em particular, eles não podem mais se imaginar como a democracia de vanguarda de uma ordem global de democracias em progresso. Esse é o cenário desanimador no qual o editor-chefe da revista britânica The Economist, John Micklethwait, e seu editor-gerente, Adrian Wooldridge, criaram The Fourth Revolution, um relato da ascensão do Estado em cinco séculos e a luta atual da democracia contra seus competidores autoritários.

Eles criticam a incompetência do Estado moderno: "O Estado sobrecarregado é uma ameaça à democracia: quanto mais responsabilidades o Leviatã assume, pior ele as desempenha e mais contrariado o povo fica - o que só o faz pedir ainda mais ajuda." Eles defendem que a única maneira de uma democracia liberal responder ao desafio autoritário de fora e a crescente insatisfação de dentro, é o Estado encolher, fazer menos, mas fazer melhor.

Em 50 páginas, os autores conduzem o leitor por três revoluções: a absolutista, de 1650, que tinha Thomas Hobbes como principal ideólogo; a versão constitucional liberal, com John Stuart Mill; e o Estado de bem-estar, criado por Beatrice e Sydney Webb, socialistas fabianos britânicos.

Ronald Reagan e Margaret Thatcher chegaram ao poder prometendo uma quarta revolução para domar o Leviatã, mas não conseguiram desmantelar o Estado de bem-estar social. Os conservadores descobriram que as expectativas e direitos que os Estados modernos atendem são resistentes a mudanças. Muitos republicanos do Tea Party abandonariam sua panaceia libertária num segundo se ela produzisse cortes em seus programas sociais.

Os políticos dos dois lados do espectro estarão realmente tomando medidas para tornar o Estado mais justo e eficiente? Os editores da Economist encontram alguns heróis democráticos aqui e ali, principalmente prefeitos de cidades grandes tentando tornar o governo mais eficiente, mas, em geral, pintam um quadro crítico de disfunção democrática em nível nacional.

Quando conservadores vencem eleições, interesses corporativos assumem o controle. Quando progressistas recuperam o poder, tornam o Estado mais dominador. Quando conservadores voltam ao cargo, eles cortam. E assim vai, uma dinâmica contínua que deixa o Estado sem reformas e cada vez mais intrusivo. Ambos os lados querem proteger a liberdade dos cidadãos, mas aumentam os poderes de vigilância do Estado.

Maltratado por essa alternância fútil, o Estado liberal está cada vez menos liberal e incapaz de controlar os interesses que deveria regular. Seus sistemas fiscal e previdenciário são tão distorcidos por interesses que perderam a capacidade de redistribuir. Longe de reduzir a desigualdade, o Estado moderno agrava o problema.

A despeito de todas as críticas ao Leviatã, os autores não têm paciência para as fantasias libertárias sobre o seu desmantelamento. O Estado poderoso veio a ser a invenção fundamental do Ocidente. A China imperial também teve um Leviatã, mas ele criou ordem enquanto sufocava a invenção. O Estado ocidental foi único no sentido de que proveu uma ordem coercitiva sem suprimir a criatividade individual.

A conquista do Ocidente, a que tornou todos os outros sucessos possíveis, foi a governança limitada pelos direitos individuais em que o poder era fiscalizado por um Judiciário independente, imprensa livre, parlamentos e Estado de direito. Para reviver o Estado liberal, os editores da Economist recomendam aos democratas que aprendam com os autoritários. Por isso, foram a Cingapura aprender como o corte de direitos e a redução de impostos impediu os pobres de caírem na rede de segurança. Voaram até Pequim para aprender como o Partido Comunista adaptou a tradição imperial e criou uma burocracia eficiente.

O fato de Cingapura e Xangai serem mais bem governadas do que Detroit e Los Angeles não é novidade. A questão é se a governança autoritária é sustentável diante das demandas da classe média de ser tratada como cidadã e se tal governança é capaz de lidar com choques radicais, como uma recessão econômica prolongada.

O arquipélago autoritário é arrogante, mas é frágil: ele precisa controlar tudo ou não controlará nada. A graça salvadora da democracia é sua adaptabilidade. Ela depende da insatisfação para sua vitalidade. A insatisfação leva à mudança pacífica de regime e, à medida que eles mudam, as sociedades livres descartam as alterativas fracassadas.

A adaptabilidade da democracia será testada na Índia, onde Narendra Modi recebeu um mandato para reformar o corrompido Estado gandhiano. Em jogo está a questão central: a democracia conseguirá competir com a modernização autoritária da China? Xi tem uma campanha anticorrupção em curso e tenta reduzir o controle do Estado sobre a economia. Quem será mais bem-sucedido, ele ou Modi?

Micklethwait e Wooldridge resistem ao lustro duro da modernização autoritária, mas pedem uma quarta revolução que retorne ao governo limitado da era vitoriana. Eles querem que as democracias simplifiquem seus sistemas fiscais, reduzam a carga tributária, que o mercado se livre de regulamentos para que siga com seu trabalho de destruição criativa. Mas querem também regular o capitalismo para que o poder do dinheiro seja controlado. Os detalhes são vagos, mas a direção é clara.

Ao focar em inovação de governo, Micklethwait e Wooldridge supõem que o problema seja melhorar a eficiência do governo. O que é necessário, porém, é o retorno à própria democracia constitucional, a tribunais e órgãos reguladores que sejam imunes ao poder do dinheiro e à influência dos poderosos, legislativos que parem de ser circos e voltem a prestar contas ao público.

Os editores da Economist querem pôr o Estado liberal numa dieta de inanição. Seu diagnóstico identifica os sintomas, mas, se for aplicado como remédio, pode matar o paciente. O problema precisa ser compreendido de maneira diferente. O Estado moderno pode ser grande em algumas áreas, mas em muitos Estados liberais, governos bem administrados estão patinando por falta de recursos para prover serviços valiosos e necessários aos cidadãos.

Os editores da Economist não oferecem uma análise real dos problemas dos recursos do Estado moderno, como a crise fiscal. Uma análise polêmica, mas persuasiva, pode ser encontrada no artigo de Joseph Stiglitz para o Roosevelt Institute. ELE argumenta que a crise fiscal do Estado liberal deve ser atribuída a três fenômenos entrelaçados: aumento da desigualdade de renda, poder do dinheiro na política e sistêmica evasão fiscal dos super-ricos e das corporações globalizadas.

À medida que a desigualdade aumenta, ela suprime a demanda efetiva. Sociedades desiguais acumulam riqueza na ponta superior, em vez de espalhar consumo e investimento por uma ampla classe média. Enquanto a desigualdade susta a demanda, corporações sentam sobre o dinheiro sem disposição de investir ou consumir. À medida que os ricos se tornam mais engenhosos na evasão fiscal, o custo de carregar o Estado liberal recai em uma classe média forçada a arcar sozinha com o fardo. É a desigualdade que sufoca a demanda e mata o Estado liberal.

A solução de Stiglitz é abrangente. Ele propõe uma alíquota de imposto de renda de 40% para os que controlam os 25% superiores da renda nacional; seguida por uma alíquota de 20% para os que detém os 25% seguintes, com deduções fiscais para todos dos 50% inferiores. Ele também propõe "uma combinação de alíquotas fiscais e incentivos ao investimento" que imporia um imposto de 15% sobre lucros corporativos e um imposto sobre o consumo de 5%.

Essa nova estrutura fiscal elevaria em 26% a captação pelo Estado da renda nacional. Essas medidas, ele calcula, resolveriam a crise fiscal do Estado liberal, moderariam a desigualdade e estimulariam o crescimento, pois o Estado gastaria riqueza hoje retida em contas bancárias corporativas - algumas no exterior - e poupanças privadas.

Sua análise identifica o problema do Estado moderno mais claramente do que os editores da Economist. O Estado liberal está em crise porque suas instituições regulatórias, legais e políticas foram capturadas ou sitiadas pelos interesses econômicos que elas deveriam controlar.

Apesar de o Estado liberal não ter surgido com a intenção de aplicar uma igualdade distributiva, ele deveria impedir que o poder do dinheiro sufocasse a competição e corrompesse o sistema político. Essa é a tarefa que ele se esforça para realizar hoje e precisa recuperar a confiança e apoio de seus cidadãos.

Não há nada de novo no desafio. As desigualdades ameaçam a igualdade política sem a qual o Estado liberal não pode funcionar. Reiteradamente, os defensores do Estado liberal na era progressista, no New Deal e no Estado de bem-estar europeu responderam ao desafio e restauraram o Estado como garantidor da ordem e da liberdade da sociedade de mercado.

Em um ponto Micklethwait e Wooldridge estão certos: o gênio do Ocidente está em sua invenção de direitos que respeitam o governo limitado, com base na confiança das pessoas comuns. Foi esse conjunto de instituições que nos fez o que um dia fomos e, se restaurarmos seu vigor, poderemos ser novamente um dia. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

É PROFESSOR DA HARVARD

KENNEDY SCHOOL

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