Historiador Christopher Clark, autor do excelente
"Os Sonâmbulos" fala sobre relação entre Primeira Guerra Mundial e
conflitos atuais
por Vivian Oswald, correspondente em Londres
LONDRES
- Foi na madrugada de 11 de junho de 1903, em Belgrado, que teria começado a
contagem regressiva para o conflito que arrastou 65 milhões de soldados aos campos
de batalha, derrubou três impérios, matou 20 milhões e feriu outros 21 milhões
de pessoas. Rebeldes invadiram o palácio real, cortaram a eletricidade em uma
explosão e, depois de uma longa perseguição à luz de velas pelos corredores e
cômodos do castelo, finalmente encontraram e mataram o rei Alexandre I e a
mulher, escondidos em um vestíbulo. É com este episódio que o professor de
História da Universidade de Cambridge Christopher Clark dá início à narrativa
eletrizante e minuciosa (a camisa de seda vermelha que o rei vestiu às pressas
para não ser descoberto sem roupas é um dos detalhes) de “Os sonâmbulos — Como
eclodiu a Primeira Guerra Mundial”, que se tornou um best-seller na Europa no
ano passado e está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
A
semente da Primeira Guerra mundial — o confronto que, segundo Clark, está por
trás de todos os horrores do século XX — havia sido plantada em 1903 pela rede
terrorista Mão Negra, até então secreta. O mesmo grupo foi o responsável, anos
depois, pelo assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, em 28
de junho de 1914, episódio considerado o estopim da guerra. O que aconteceu
entre a morte do arquiduque e o primeiro disparo nas trincheiras, porém, não
foi como muitos aprenderam nas escolas, de acordo com Clark. Diferentemente do
que a literatura destes últimos 100 anos ensina, ele afirma que a Alemanha não
foi a única responsável pela escalada da tensão. Outros tiveram a sua parcela
de culpa: Império Austro-Húngaro, França, Rússia, Grã-Bretanha e Itália, que,
embora de fato não quisessem uma guerra, deixaram-se levar para o conflito como
sonâmbulos.
— Todos
contribuíram. Não adianta apenas apontar o dedo para os alemães. Os “mocinhos”
também tiveram a sua parcela de responsabilidade nos conflitos — diz o
historiador ao GLOBO.
A reação
à análise de Christopher Clark deixou-o em uma posição desconfortável. Foi
acusado por especialistas de eximir a Alemanha da culpa pela Primeira Guerra e
aclamado por alguns grupos — sobretudo alemães — justamente por tê-lo feito.
Antes mesmo de ser perguntado sobre o assunto, Clark garante que as críticas
não o incomodam e são saudáveis para o debate:
— Não
estou tirando a responsabilidade da Alemanha sobre o que aconteceu. Até porque
os alemães têm uma substancial parcela de culpa — diz Clark, ressaltando que as
origens da guerra devem ser estudadas à luz do cenário europeu de então,
considerando-se os vários filtros da época. — Depois da guerra com armas nos
campos de batalha, veio a guerra dos documentos — diz.
Não
bastasse a quantidade maciça de informações sobre a guerra, com mais de 25 mil
volumes e artigos, a maioria dos documentos oficiais produzidos pelas nações à
época trazia diferentes visões dos fatos. Os 57 volumes do “Die Grosse
Politik”, por exemplo, com os 15.889 documentos divididos por 300 assuntos,
encarregou-se de tirar dos ombros alemães o ônus da culpa refletida no Tratado
de Versalhes.
RISCO DE MANIPULAÇÃO E DESTRUIÇÃO DE DOCUMENTOS
Outros
países também deram destaque ao que queriam que ficasse para a posteridade. É como
se qualquer ponto de vista pudesse ser comprovado “a partir de uma seleção de
documentos”, diz. Na Rússia, boa parte dos registros se perderam durante a
guerra civil que levou os bolcheviques ao poder. E a União Soviética nunca
teria compilado documentos de maneira sistemática para rivalizar com as edições
inglesas, francesas, alemães ou austríacas.
— Não
estou menosprezando esses documentos. Eles são importantíssimos. Não são
manipulados, mas têm omissões — afirma Clark. — O problema de 1914 não é que
sabemos pouco, pelo contrário, sabemos demais. Há uma oferta oceânica de
informações. Mas existe o risco de destruição das fontes, o que significa que
algumas informações podem não chegar a público
Tendo
como pano de fundo uma Europa em crise, onde não havia transparência nem
confiança, os líderes da época tomaram as suas decisões com base nas
informações de que dispunham, em estereótipos dos inimigos e nas interpretações
que eram capazes de fazer dos fatos. Para Clark, contribuíram para este cenário
cinzento o medo que as elites no poder tinham da ascensão do proletariado e dos
partidos socialistas, e uma espécie de “crise de masculinidade”, a partir da
qual os homens que estavam no comando da situação tentavam se afirmar.
— É
claro que não queriam a guerra, mas correram o risco. Eram muitos atores, dos
Bálcãs até Romênia, Bulgária e Itália. Todos eram independentes e tomavam
decisões autônomas. Por isso, considero este o evento mais complexo do século
XX.
Em uma
crítica elogiosa ao livro, a revista “Foreign Affairs” afirma que a
interpretação de Clark “não apenas captura as tendências na historiografia
moderna da Primeira Guerra, mas também destaca as semelhanças (e algumas
diferenças) no processo de decisão dos conflitos contemporâneos”.
Enquanto
escrevia a conclusão do livro, em plena crise financeira na zona do euro, Clark
destacou que os homens de 1914 são “nossos contemporâneos”. Segundo ele, as
diferenças são tão relevantes quanto as semelhanças. “Pelo menos os ministros
encarregados de lidar com a crise na zona do euro concordaram em linhas gerais
sobre o que era o problema — em 1914, por outro lado, um abismo de perspectivas
éticas e políticas minou o consenso e acabou com a confiança”, afirma. E
termina: “Mas se a crise financeira global recente teve como pano de fundo a
difusão de poderes e responsabilidades sob um único sistema
político-financeiro, a complexidade de 1914 está justamente no fato de terem
sido interações rápidas entre centros de poder autônomos fortemente armados confrontando
diferentes tipos de ameaças em condições de alto risco e pouca confiança e
transparência”.
'O MUNDO DE HOJE NÃO É TRANSPARENTE', DIZ CLARK
Clark
observa que a crise na Ucrânia foi mais um episódio que fez lembrar o momento
histórico de 1914. Já não se trata da disputa de poder entre dois blocos, como
acontecia durante a Guerra Fria. Há outras potências em questão, e a China é
uma delas, além da Turquia e o Irã:
— O
mundo de hoje não é transparente e os níveis de confiança são baixos — diz ele,
fazendo uma comparação com a Primeira Guerra. — Naquela época, duas potências
centrais enfrentavam um trio de impérios mundiais nas periferias leste e oeste
da Europa. Hoje, uma coalizão ampla de estados da Europa Ocidental e Central se
uniu contra as intervenções da Rússia na Ucrânia. Mas o incansável e ambicioso
reino do Kaiser de 1914 pouco se parece com a União Europeia, uma ordem
internacional em que a paz é garantida por diferentes atores estatais, uma
espécie de balanço de poder, que não consegue projetar poder nem formular
política externa.
Recentemente,Clark
voltou a ser acusado de deixar de lado os “mocinhos” e tomar partido dos
“bandidos” ao afirmar que a crise na Ucrânia, que começou com protestos nas
ruas no final do ano passado e culminou na derrubada do poder local e a
anexação da Crimeia pela Rússia em fevereiro, não foi provocada apenas pelo
presidente russo, Vladimir Putin. Os países do Ocidente, segundo ele, também
têm a sua parcela de culpa ao interferir nos problemas domésticos de Kiev e apoiar
a derrubada do presidente democraticamente eleito.
Perguntado
sobre que lições o mundo poderia tirar do conflito de 100 anos atrás, ele é
taxativo:
— Não é
lição. 1914 é um oráculo, um alerta importante sobre como os custos podem ser
terríveis quando a política falha, o diálogo acaba e o compromisso se torna
impossível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário