sábado, 21 de junho de 2014

79 - Historiador comenta a Primeira Guerra Mundial


Historiador Christopher Clark, autor do excelente "Os Sonâmbulos" fala sobre relação entre Primeira Guerra Mundial e conflitos atuais

por Vivian Oswald, correspondente em Londres

LONDRES - Foi na madrugada de 11 de junho de 1903, em Belgrado, que teria começado a contagem regressiva para o conflito que arrastou 65 milhões de soldados aos campos de batalha, derrubou três impérios, matou 20 milhões e feriu outros 21 milhões de pessoas. Rebeldes invadiram o palácio real, cortaram a eletricidade em uma explosão e, depois de uma longa perseguição à luz de velas pelos corredores e cômodos do castelo, finalmente encontraram e mataram o rei Alexandre I e a mulher, escondidos em um vestíbulo. É com este episódio que o professor de História da Universidade de Cambridge Christopher Clark dá início à narrativa eletrizante e minuciosa (a camisa de seda vermelha que o rei vestiu às pressas para não ser descoberto sem roupas é um dos detalhes) de “Os sonâmbulos — Como eclodiu a Primeira Guerra Mundial”, que se tornou um best-seller na Europa no ano passado e está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras.

A semente da Primeira Guerra mundial — o confronto que, segundo Clark, está por trás de todos os horrores do século XX — havia sido plantada em 1903 pela rede terrorista Mão Negra, até então secreta. O mesmo grupo foi o responsável, anos depois, pelo assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, em 28 de junho de 1914, episódio considerado o estopim da guerra. O que aconteceu entre a morte do arquiduque e o primeiro disparo nas trincheiras, porém, não foi como muitos aprenderam nas escolas, de acordo com Clark. Diferentemente do que a literatura destes últimos 100 anos ensina, ele afirma que a Alemanha não foi a única responsável pela escalada da tensão. Outros tiveram a sua parcela de culpa: Império Austro-Húngaro, França, Rússia, Grã-Bretanha e Itália, que, embora de fato não quisessem uma guerra, deixaram-se levar para o conflito como sonâmbulos.

— Todos contribuíram. Não adianta apenas apontar o dedo para os alemães. Os “mocinhos” também tiveram a sua parcela de responsabilidade nos conflitos — diz o historiador ao GLOBO.

A reação à análise de Christopher Clark deixou-o em uma posição desconfortável. Foi acusado por especialistas de eximir a Alemanha da culpa pela Primeira Guerra e aclamado por alguns grupos — sobretudo alemães — justamente por tê-lo feito. Antes mesmo de ser perguntado sobre o assunto, Clark garante que as críticas não o incomodam e são saudáveis para o debate:

— Não estou tirando a responsabilidade da Alemanha sobre o que aconteceu. Até porque os alemães têm uma substancial parcela de culpa — diz Clark, ressaltando que as origens da guerra devem ser estudadas à luz do cenário europeu de então, considerando-se os vários filtros da época. — Depois da guerra com armas nos campos de batalha, veio a guerra dos documentos — diz.

Não bastasse a quantidade maciça de informações sobre a guerra, com mais de 25 mil volumes e artigos, a maioria dos documentos oficiais produzidos pelas nações à época trazia diferentes visões dos fatos. Os 57 volumes do “Die Grosse Politik”, por exemplo, com os 15.889 documentos divididos por 300 assuntos, encarregou-se de tirar dos ombros alemães o ônus da culpa refletida no Tratado de Versalhes.

RISCO DE MANIPULAÇÃO E DESTRUIÇÃO DE DOCUMENTOS

Outros países também deram destaque ao que queriam que ficasse para a posteridade. É como se qualquer ponto de vista pudesse ser comprovado “a partir de uma seleção de documentos”, diz. Na Rússia, boa parte dos registros se perderam durante a guerra civil que levou os bolcheviques ao poder. E a União Soviética nunca teria compilado documentos de maneira sistemática para rivalizar com as edições inglesas, francesas, alemães ou austríacas.

— Não estou menosprezando esses documentos. Eles são importantíssimos. Não são manipulados, mas têm omissões — afirma Clark. — O problema de 1914 não é que sabemos pouco, pelo contrário, sabemos demais. Há uma oferta oceânica de informações. Mas existe o risco de destruição das fontes, o que significa que algumas informações podem não chegar a público

Tendo como pano de fundo uma Europa em crise, onde não havia transparência nem confiança, os líderes da época tomaram as suas decisões com base nas informações de que dispunham, em estereótipos dos inimigos e nas interpretações que eram capazes de fazer dos fatos. Para Clark, contribuíram para este cenário cinzento o medo que as elites no poder tinham da ascensão do proletariado e dos partidos socialistas, e uma espécie de “crise de masculinidade”, a partir da qual os homens que estavam no comando da situação tentavam se afirmar.

— É claro que não queriam a guerra, mas correram o risco. Eram muitos atores, dos Bálcãs até Romênia, Bulgária e Itália. Todos eram independentes e tomavam decisões autônomas. Por isso, considero este o evento mais complexo do século XX.

Em uma crítica elogiosa ao livro, a revista “Foreign Affairs” afirma que a interpretação de Clark “não apenas captura as tendências na historiografia moderna da Primeira Guerra, mas também destaca as semelhanças (e algumas diferenças) no processo de decisão dos conflitos contemporâneos”.

Enquanto escrevia a conclusão do livro, em plena crise financeira na zona do euro, Clark destacou que os homens de 1914 são “nossos contemporâneos”. Segundo ele, as diferenças são tão relevantes quanto as semelhanças. “Pelo menos os ministros encarregados de lidar com a crise na zona do euro concordaram em linhas gerais sobre o que era o problema — em 1914, por outro lado, um abismo de perspectivas éticas e políticas minou o consenso e acabou com a confiança”, afirma. E termina: “Mas se a crise financeira global recente teve como pano de fundo a difusão de poderes e responsabilidades sob um único sistema político-financeiro, a complexidade de 1914 está justamente no fato de terem sido interações rápidas entre centros de poder autônomos fortemente armados confrontando diferentes tipos de ameaças em condições de alto risco e pouca confiança e transparência”.

'O MUNDO DE HOJE NÃO É TRANSPARENTE', DIZ CLARK

Clark observa que a crise na Ucrânia foi mais um episódio que fez lembrar o momento histórico de 1914. Já não se trata da disputa de poder entre dois blocos, como acontecia durante a Guerra Fria. Há outras potências em questão, e a China é uma delas, além da Turquia e o Irã:

— O mundo de hoje não é transparente e os níveis de confiança são baixos — diz ele, fazendo uma comparação com a Primeira Guerra. — Naquela época, duas potências centrais enfrentavam um trio de impérios mundiais nas periferias leste e oeste da Europa. Hoje, uma coalizão ampla de estados da Europa Ocidental e Central se uniu contra as intervenções da Rússia na Ucrânia. Mas o incansável e ambicioso reino do Kaiser de 1914 pouco se parece com a União Europeia, uma ordem internacional em que a paz é garantida por diferentes atores estatais, uma espécie de balanço de poder, que não consegue projetar poder nem formular política externa.

Recentemente,Clark voltou a ser acusado de deixar de lado os “mocinhos” e tomar partido dos “bandidos” ao afirmar que a crise na Ucrânia, que começou com protestos nas ruas no final do ano passado e culminou na derrubada do poder local e a anexação da Crimeia pela Rússia em fevereiro, não foi provocada apenas pelo presidente russo, Vladimir Putin. Os países do Ocidente, segundo ele, também têm a sua parcela de culpa ao interferir nos problemas domésticos de Kiev e apoiar a derrubada do presidente democraticamente eleito.

Perguntado sobre que lições o mundo poderia tirar do conflito de 100 anos atrás, ele é taxativo:

— Não é lição. 1914 é um oráculo, um alerta importante sobre como os custos podem ser terríveis quando a política falha, o diálogo acaba e o compromisso se torna impossível.

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