Pessoal, segue um texto interessante do historiador Francisco Carlos Teixeira sobre a exposição “Hitler e os alemães”, organizada em Berlim. O texto saiu no site Carta Maior.
Hitler de volta a Berlim
Neste inverno de 2011 a cidade de Berlim hospeda a exposição “Hitler e os alemães: ‘Volskgemeinschaft’ (1) e Criminosos”. O sucesso da exposição foi tamanho que, algo raro para o calendário alemão, a exposição foi prolongada para além do seu término programado (no início de fevereiro de 2011), permitindo a continuada visita de adolescentes e seus professores, jovens e grupos de militares das forças aramadas alemães.
Hitler no coração do militarismo alemão
O evento realiza-se na chamada “Zeughaus”, a antiga Casa de Armas do Império alemão (1871-1918), no centro histórico de Berlim (2). O próprio endereço da exposição – na famosa rua Unter den Linden (Sob as Tílias) a poucos metros da “Neue Wache” (a Guarda Nova) – é sintomático. Este vasto espaço da cidade de Berlim, entre o Sigsäule – a Coluna da Vitória, construída após a vitória alemã contra os franceses em 1871 (e montada com os canhões franceses tomados na Batalha de Sedan) - e a Ponte do Castelo, onde ficava o castelo imperial da dinastia Hohenzollern, passando pelo Arco do Brandenburgo, foi palco dos principais eventos de massa organizados pelo regime nazista (em verdade pelo ministro da informação e propaganda, Joseph Goebbels). Foi neste espaço histórico, carregado de eventos, alguns bastante tenebrosos, que um grupo de historiadores e museólogos resolveu instalar a exposição sobre Hitler.
Uma exposição sobre o silêncio
Na própria exposição fotos e filmes do período nazista mostram as marchas massivas, na maioria dos casos noturnas com tochas nas mãos, nas quais milhares de alemães das SA e das SS desfilavam para impressionar e seduzir as massas alemães naquele mesmo local. Há poucos metros da Zeughaus, hoje transformada em Museu Histórico Alemão – da mesma forma que no Rio transformamos a antiga Casa do Trem em Museu Histórico – ficava o Palácio Imperial, sede do governo durante o Império e a República de Weimar (1919-1933), onde Hitler fez inúmeros de seus discursos. Toda a área seria objeto, após a suposta vitória alemã na Segunda Guerra Mundial, de ampla remodelação, gigantesca e inumana, organizada por Albert Speer, o arquiteto de Hitler, a fim de transformar Berlim em símbolo do poder ariano e na mais portentosa capital da Europa.
Na verdade, o conjunto arquitetônico foi duramente bombardeado por ingleses e americanos durante o chamado “Der Brand” – o Incêndio, como a historiografia alemã denomina as conseqüências da estratégia aérea do General (inglês) Harris contra o Terceiro Reich. Mais tarde, em 1945, foi palco central da Batalha de Berlim, quando finalmente os soviéticos conquistaram a capital do Terceiro Reich e puseram fim ao “Império de mil anos” de Hitler.
Tal escolha e centralidade da realização da exposição são importantes e eloqüentes e faz parte da própria concepção do evento. Na verdade, “Hitler e os alemães” possui um claro objetivo, ao mesmo tempo histórico e político.
Por que voltar a Hitler?
Para os realizadores da exposição trata-se de mudar o foco dos debates e da forma de expor e retratar Hitler e o Terceiro Reich (3) . Para estes, a maior parte das exposições, eventos e livros estão centrados na própria figura de Hitler, na sua biografia e na sua “carreira”. Hitler surgeria assim como a personificação do mal. Mas, o Terceiro Reich foi obra solitária de Hitler? Caberia, para mudar o foco considerado insuficiente, responder a uma dupla pergunta: Por que Hitler foi possível? E, em segundo lugar, qual o significado da escolha de Hitler – e foi uma escolha, conforme os organizadores – pelo povo alemão em 1933? E por que continuaram a apoiá-lo até o fim em 1945?
Assim, a centralidade da própria figura de Hitler deveria ser deslocada em favor daqueles que o escolheram e das condições em que tal escolha foi feita. Exposições anteriores, mesmo as mais importantes, e grandes livros que marcam a literatura vastíssima sobre o Terceiro Reich encontram-se por demais centradas na figura do próprio Führer – como a grande e documentada biografia de Joachim Fest ou o filme “A Queda”. Não seria isso produto da própria propaganda nazista?
Trabalhando para Hitler
Livros fantásticos como de Karl-Dietrich Bracher, Joaquim Fest, Hans Mommsen ou Ian Kershaw (4) – este recentemente editado no Brasil com um bom trabalho de tradução e de composição – buscam no próprio Hitler a explicação do fenômeno do nazismo. A participação da massa alemã – afinal 33% da população adulta votou no Partido Nazista em 1933 – originaria, no âmbito da discussão chamada “A Querela dos Historiadores” (o chamado “Historikerstreit”), a discutir muitio mais o papel do ditador do que as condições de exercício do poder pelo Partido Nazista e seus aderentes. Teses novas, e intensos debates entre professores universitários alemães nos anos 80 e, um pouco mais tarde, desembocaram na já célebre explicação defendida por Ian Kershaw. Trata-se da idéia de um amplo grupo de pessoas que se dedicaram a “working for Hitler” – trabalhar para Hitler. Uma adesão livre da população e expontânea, definida a partir de demandas e comandos superiores, no mais das vezes do próprio Führer.
A questão principal colocada pela exposição, de forma clara e direta, remete a adesão e entusiasmo com que a população alemã participou do Terceiro Reich. Ao lado do fenômeno já amplamente estudado e sobre o qual paira uma boa concordância, chamado de “Gleichhaltung” da sociedade alemã nos primeiros anos do nazismo (1933 até 1936) – ou seja, o conjunto de medidas tomadas pelo Estado nazista visando organizar a sociedade conforme as idéias propostas pelo nacional-socialismo. Nicos Poulantzas, numa obra já antiga – e em vários aspectos superada – denominou a “Gleichhaltung” como “processo de fascistização”.
Ora, os organizadores da exposição propõem além da “Gleichhaltung” – sob comando do Estado, portanto de cima para baixo – uma “Selbstgleichaltung”, ou seja, um processo de fascistização comandado e assumido pela própria (“selbst”) sociedade.
Questionado o silêncio
Assim, a resposta da questão dupla acima colocada voltar-se-ia para a própria sociedade alemã, buscando estabelecer nos desejos, esperanças e frustrações do povo alemão a adesão para com o nacional-socialismo. Os textos e guias da exposição não temem utilizar a expressão “cooperação” – “mitmachen” – para dar conta da relação entre povo, partido e seu Führer.
Eis aqui um passo importante e original no debate historiográfico. Tradicionalmente a posição de historiadores e políticos alemães (em especial na República Federal) colocava os próprios alemães como vítimas do nazismo. Desde Konrad Adenauer (primeiro chanceler da república Federal) a derrota de 1945 é descrita como a “libertação” dos alemães, alterando profundamente o próprio sentido da história. Para outros, bem ao contrário, havia uma “culpa coletiva” que recobria, com um manto de infâmia, todos os alemães.
Na exposição “Hitler e os alemães” existe uma gradação muito clara de “Faszination” e de “Cooperação” (“mitmachen”) até a aprovação (“billigen”) dos próprios crimes do nazismo, bem como de oposição e resistência (fatos diferenciados) e que implica em plena consciência dos contemporâneos de Hitler sobre o fenômeno que vivenciavam, bem como sua natureza violenta e a compreensão do alcance criminoso do nazismo.
O pretenso poder de Hitler foi, desta forma, preencher as expectativas e esperanças pré-existentes do povo alemão, não sendo ele mesmo o “autor” ou “produtor” de tais expectativas.
A própria aceitação, com entusiasmo, frieza ou simplesmente oportunismo, do conceito de “Volskgemeinschaft” por parte do povo alemão implicava na cooperação com o nazismo. A noção de “comunidade do povo”, conforme construído sob o nazismo, teria em seu núcleo uma promessa real de violência.
A adesão
Neste sentido na vigência das noções de decorrentes de “Volksgemeischaft” – tais como a pureza do sangue ariano, a exclusão de deficientes e de “diferentes” de todo tipo, a substituição dos conflitos de classe pela cooperação entre os membros da raça superior – plena de violência normativa impregnava a sociedade alemã de forma brutal.
Conforme os organizadores, tal violência não era, de forma alguma, decorrente de ordens e decisões “nur von homem” – apenas vindas “de cima”, demandadas de forma implícita ou explicita pelo regime e seus diversos pequenos “Führers” setoriais e regionais. A violência era produzida – no processo de exclusão social produzido pela aceitação voluntária das nações de “Volksgemeischaft” - através de um processo oriundo, ou mesmo antecipado, das próprias bases da sociedade alemã – “durch Prozesse an der Basis”.
Esta é, sem dúvida, uma discussão dura e amarga e que envolve o povo alemão. Mas, a análise direta e responsável do grupo de pedagogos e historiadores que o organizaram a exposição implica numa ampla capacidade comparativa com todas as demais ditaduras. Eis aí um ponto de largo interesse com a América Latina. A questão central estaria, neste caso, em se perguntar se o processo de consumação da violência nas ditaduras é, de alguma, forma diferente ou comparável. Em verdade, se tivermos em mente as experiências históricas das ditaduras latino-americanas – sejam aquelas dos anos 30/40 do século XX ou as ditaduras militares dos anos 60/80 - poderíamos nos perguntar sobre a mesma, em escalas diferenciadas, adesão das sociedades latino-americanas ao processo de violência quotidiana desencadeado pela possibilidade de excluir e punir indivíduos considerados diferentes. Em graus diferentes é um debate recorrente em todos as ditaduras.
NOTAS
(1) O termo “Gemeinschaft!” é de difícil tradução no seu sentido histórico. Embora tenha sido criado pelo sociólogo alemão Tönnies, ainda no século XIX, e seguidamente utilizado no sentido de “comunidade”, em oposição à sociedade, descrevendo sociedades de solidariedade mais mecânica e autoritária, enquanto a sociedade seria mais orgânica e eletiva, no Terceiro Reich assumiu um significado profundamente ideológico representando o conjunto do povo alemão – o Volk – constituído pelo conjunto da população ariana, de sangue superior, na Europa, englobando alemães, austríacos, alemães dos Sudetos e outras populações de sangue ariano. Na exposição este sentido é retomado para recobrir o conjunto da sociedade alemã que aderiu de forma voluntária – passiva ou ativamente – ao nacional-socialismo.
(2) Trata-se de um amplo conjunto arquitetônico construído em pesado estilo barroco a partir de 1706 para ser a armaria do rei da Prússia. Foi amplamente reformada em 2003 pelo famoso arquiteto I.M.Pei, ganhando novas alas modernas e uma ampla cúpula de vidro. Lá estão, em exposição permanente, os principais fatos da história contemporânea alemã, incluindo a guerra e o Holocausto. Há poucos metros fica a Neue Wache ( a Nova Guarda ), construída em 1816 pelo famoso arquiteto prussiano Karl Friedrich Schinkel e cenário de coreográficas manifestações do militarismo prussiano. Hoje a Neue Wache é um monumento às vítimas da guerra, com uma bela escultura de Käthe Kollwitz substituindo os símbolos militares do Reich.
(3) Os organizadores da exposição são os professores Hans-Ulrich Thamer, da Universidade de Munster; a museóloga do Museu Histórico de Berlim Simone Erpel e o arquiteto Klaus-Jürgen Sembach, com a cooperação de historiadores como Michael Sturm.
(4) Estamos aqui conscientemente excluindo do debate a tese de Daniel Goldhagen sobre a predisposição histórica da população alemã ao Holocausto, conforme expressa em “Os carrascos voluntários de Hitler”, por sua vaguidão histórica, ausência de pesquisa própria e caráter sensacionalista
Hitler no coração do militarismo alemão
O evento realiza-se na chamada “Zeughaus”, a antiga Casa de Armas do Império alemão (1871-1918), no centro histórico de Berlim (2). O próprio endereço da exposição – na famosa rua Unter den Linden (Sob as Tílias) a poucos metros da “Neue Wache” (a Guarda Nova) – é sintomático. Este vasto espaço da cidade de Berlim, entre o Sigsäule – a Coluna da Vitória, construída após a vitória alemã contra os franceses em 1871 (e montada com os canhões franceses tomados na Batalha de Sedan) - e a Ponte do Castelo, onde ficava o castelo imperial da dinastia Hohenzollern, passando pelo Arco do Brandenburgo, foi palco dos principais eventos de massa organizados pelo regime nazista (em verdade pelo ministro da informação e propaganda, Joseph Goebbels). Foi neste espaço histórico, carregado de eventos, alguns bastante tenebrosos, que um grupo de historiadores e museólogos resolveu instalar a exposição sobre Hitler.
Uma exposição sobre o silêncio
Na própria exposição fotos e filmes do período nazista mostram as marchas massivas, na maioria dos casos noturnas com tochas nas mãos, nas quais milhares de alemães das SA e das SS desfilavam para impressionar e seduzir as massas alemães naquele mesmo local. Há poucos metros da Zeughaus, hoje transformada em Museu Histórico Alemão – da mesma forma que no Rio transformamos a antiga Casa do Trem em Museu Histórico – ficava o Palácio Imperial, sede do governo durante o Império e a República de Weimar (1919-1933), onde Hitler fez inúmeros de seus discursos. Toda a área seria objeto, após a suposta vitória alemã na Segunda Guerra Mundial, de ampla remodelação, gigantesca e inumana, organizada por Albert Speer, o arquiteto de Hitler, a fim de transformar Berlim em símbolo do poder ariano e na mais portentosa capital da Europa.
Na verdade, o conjunto arquitetônico foi duramente bombardeado por ingleses e americanos durante o chamado “Der Brand” – o Incêndio, como a historiografia alemã denomina as conseqüências da estratégia aérea do General (inglês) Harris contra o Terceiro Reich. Mais tarde, em 1945, foi palco central da Batalha de Berlim, quando finalmente os soviéticos conquistaram a capital do Terceiro Reich e puseram fim ao “Império de mil anos” de Hitler.
Tal escolha e centralidade da realização da exposição são importantes e eloqüentes e faz parte da própria concepção do evento. Na verdade, “Hitler e os alemães” possui um claro objetivo, ao mesmo tempo histórico e político.
Por que voltar a Hitler?
Para os realizadores da exposição trata-se de mudar o foco dos debates e da forma de expor e retratar Hitler e o Terceiro Reich (3) . Para estes, a maior parte das exposições, eventos e livros estão centrados na própria figura de Hitler, na sua biografia e na sua “carreira”. Hitler surgeria assim como a personificação do mal. Mas, o Terceiro Reich foi obra solitária de Hitler? Caberia, para mudar o foco considerado insuficiente, responder a uma dupla pergunta: Por que Hitler foi possível? E, em segundo lugar, qual o significado da escolha de Hitler – e foi uma escolha, conforme os organizadores – pelo povo alemão em 1933? E por que continuaram a apoiá-lo até o fim em 1945?
Assim, a centralidade da própria figura de Hitler deveria ser deslocada em favor daqueles que o escolheram e das condições em que tal escolha foi feita. Exposições anteriores, mesmo as mais importantes, e grandes livros que marcam a literatura vastíssima sobre o Terceiro Reich encontram-se por demais centradas na figura do próprio Führer – como a grande e documentada biografia de Joachim Fest ou o filme “A Queda”. Não seria isso produto da própria propaganda nazista?
Trabalhando para Hitler
Livros fantásticos como de Karl-Dietrich Bracher, Joaquim Fest, Hans Mommsen ou Ian Kershaw (4) – este recentemente editado no Brasil com um bom trabalho de tradução e de composição – buscam no próprio Hitler a explicação do fenômeno do nazismo. A participação da massa alemã – afinal 33% da população adulta votou no Partido Nazista em 1933 – originaria, no âmbito da discussão chamada “A Querela dos Historiadores” (o chamado “Historikerstreit”), a discutir muitio mais o papel do ditador do que as condições de exercício do poder pelo Partido Nazista e seus aderentes. Teses novas, e intensos debates entre professores universitários alemães nos anos 80 e, um pouco mais tarde, desembocaram na já célebre explicação defendida por Ian Kershaw. Trata-se da idéia de um amplo grupo de pessoas que se dedicaram a “working for Hitler” – trabalhar para Hitler. Uma adesão livre da população e expontânea, definida a partir de demandas e comandos superiores, no mais das vezes do próprio Führer.
A questão principal colocada pela exposição, de forma clara e direta, remete a adesão e entusiasmo com que a população alemã participou do Terceiro Reich. Ao lado do fenômeno já amplamente estudado e sobre o qual paira uma boa concordância, chamado de “Gleichhaltung” da sociedade alemã nos primeiros anos do nazismo (1933 até 1936) – ou seja, o conjunto de medidas tomadas pelo Estado nazista visando organizar a sociedade conforme as idéias propostas pelo nacional-socialismo. Nicos Poulantzas, numa obra já antiga – e em vários aspectos superada – denominou a “Gleichhaltung” como “processo de fascistização”.
Ora, os organizadores da exposição propõem além da “Gleichhaltung” – sob comando do Estado, portanto de cima para baixo – uma “Selbstgleichaltung”, ou seja, um processo de fascistização comandado e assumido pela própria (“selbst”) sociedade.
Questionado o silêncio
Assim, a resposta da questão dupla acima colocada voltar-se-ia para a própria sociedade alemã, buscando estabelecer nos desejos, esperanças e frustrações do povo alemão a adesão para com o nacional-socialismo. Os textos e guias da exposição não temem utilizar a expressão “cooperação” – “mitmachen” – para dar conta da relação entre povo, partido e seu Führer.
Eis aqui um passo importante e original no debate historiográfico. Tradicionalmente a posição de historiadores e políticos alemães (em especial na República Federal) colocava os próprios alemães como vítimas do nazismo. Desde Konrad Adenauer (primeiro chanceler da república Federal) a derrota de 1945 é descrita como a “libertação” dos alemães, alterando profundamente o próprio sentido da história. Para outros, bem ao contrário, havia uma “culpa coletiva” que recobria, com um manto de infâmia, todos os alemães.
Na exposição “Hitler e os alemães” existe uma gradação muito clara de “Faszination” e de “Cooperação” (“mitmachen”) até a aprovação (“billigen”) dos próprios crimes do nazismo, bem como de oposição e resistência (fatos diferenciados) e que implica em plena consciência dos contemporâneos de Hitler sobre o fenômeno que vivenciavam, bem como sua natureza violenta e a compreensão do alcance criminoso do nazismo.
O pretenso poder de Hitler foi, desta forma, preencher as expectativas e esperanças pré-existentes do povo alemão, não sendo ele mesmo o “autor” ou “produtor” de tais expectativas.
A própria aceitação, com entusiasmo, frieza ou simplesmente oportunismo, do conceito de “Volskgemeinschaft” por parte do povo alemão implicava na cooperação com o nazismo. A noção de “comunidade do povo”, conforme construído sob o nazismo, teria em seu núcleo uma promessa real de violência.
A adesão
Neste sentido na vigência das noções de decorrentes de “Volksgemeischaft” – tais como a pureza do sangue ariano, a exclusão de deficientes e de “diferentes” de todo tipo, a substituição dos conflitos de classe pela cooperação entre os membros da raça superior – plena de violência normativa impregnava a sociedade alemã de forma brutal.
Conforme os organizadores, tal violência não era, de forma alguma, decorrente de ordens e decisões “nur von homem” – apenas vindas “de cima”, demandadas de forma implícita ou explicita pelo regime e seus diversos pequenos “Führers” setoriais e regionais. A violência era produzida – no processo de exclusão social produzido pela aceitação voluntária das nações de “Volksgemeischaft” - através de um processo oriundo, ou mesmo antecipado, das próprias bases da sociedade alemã – “durch Prozesse an der Basis”.
Esta é, sem dúvida, uma discussão dura e amarga e que envolve o povo alemão. Mas, a análise direta e responsável do grupo de pedagogos e historiadores que o organizaram a exposição implica numa ampla capacidade comparativa com todas as demais ditaduras. Eis aí um ponto de largo interesse com a América Latina. A questão central estaria, neste caso, em se perguntar se o processo de consumação da violência nas ditaduras é, de alguma, forma diferente ou comparável. Em verdade, se tivermos em mente as experiências históricas das ditaduras latino-americanas – sejam aquelas dos anos 30/40 do século XX ou as ditaduras militares dos anos 60/80 - poderíamos nos perguntar sobre a mesma, em escalas diferenciadas, adesão das sociedades latino-americanas ao processo de violência quotidiana desencadeado pela possibilidade de excluir e punir indivíduos considerados diferentes. Em graus diferentes é um debate recorrente em todos as ditaduras.
NOTAS
(1) O termo “Gemeinschaft!” é de difícil tradução no seu sentido histórico. Embora tenha sido criado pelo sociólogo alemão Tönnies, ainda no século XIX, e seguidamente utilizado no sentido de “comunidade”, em oposição à sociedade, descrevendo sociedades de solidariedade mais mecânica e autoritária, enquanto a sociedade seria mais orgânica e eletiva, no Terceiro Reich assumiu um significado profundamente ideológico representando o conjunto do povo alemão – o Volk – constituído pelo conjunto da população ariana, de sangue superior, na Europa, englobando alemães, austríacos, alemães dos Sudetos e outras populações de sangue ariano. Na exposição este sentido é retomado para recobrir o conjunto da sociedade alemã que aderiu de forma voluntária – passiva ou ativamente – ao nacional-socialismo.
(2) Trata-se de um amplo conjunto arquitetônico construído em pesado estilo barroco a partir de 1706 para ser a armaria do rei da Prússia. Foi amplamente reformada em 2003 pelo famoso arquiteto I.M.Pei, ganhando novas alas modernas e uma ampla cúpula de vidro. Lá estão, em exposição permanente, os principais fatos da história contemporânea alemã, incluindo a guerra e o Holocausto. Há poucos metros fica a Neue Wache ( a Nova Guarda ), construída em 1816 pelo famoso arquiteto prussiano Karl Friedrich Schinkel e cenário de coreográficas manifestações do militarismo prussiano. Hoje a Neue Wache é um monumento às vítimas da guerra, com uma bela escultura de Käthe Kollwitz substituindo os símbolos militares do Reich.
(3) Os organizadores da exposição são os professores Hans-Ulrich Thamer, da Universidade de Munster; a museóloga do Museu Histórico de Berlim Simone Erpel e o arquiteto Klaus-Jürgen Sembach, com a cooperação de historiadores como Michael Sturm.
(4) Estamos aqui conscientemente excluindo do debate a tese de Daniel Goldhagen sobre a predisposição histórica da população alemã ao Holocausto, conforme expressa em “Os carrascos voluntários de Hitler”, por sua vaguidão histórica, ausência de pesquisa própria e caráter sensacionalista
Francisco Carlos Teixeira. Carta Maior, 2 de março de 2011
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