quarta-feira, 8 de abril de 2009

14 - Reflexões sobre a democracia (3)

Democracia, vontade popular e valores culturais

O texto abaixo é do jornalista Reinaldo Azevedo:

Nem o povo tem direito de golpear a democracia. Alguns relativistas vieram, então, com suas bizarrices: “Oh, mas os governos são construções históricas, não caem do céu!” Ora, não me digam! Ou então: “Mas o que é a verdadeira democracia?” — estes acreditam que ou a verdade cai do céu, ou tudo é falso.

É claro que a democracia representativa é uma construção histórica. Ela não se assenta apenas na observância das leis (estado de direito), posto que é possível haver “ditaduras de direito” — ou seja: elas só esmagam o cidadão segundo o código discricionário e transformam em leis as proibições as mais estúpidas. A democracia também não se assenta apenas na vontade da maioria, posto que é possível haver regimes violentos que contam com apoio popular, embora suas práticas sejam condenáveis (voltaremos a essa palavra; não se esqueçam dela): os fascismos europeus da década de 40 do século passado são clássicos no gênero; é possível que o Taleban, no Afeganistão, tivesse o apoio da maioria.

Então vejam: o estado de direito não basta para fazer uma democracia. O estado de direito mais a vontade da maioria não bastam para fazer uma democracia. Alguém pode indagar: “E se acrescentarmos aí, Reinaldo, a divisão e independência entre os Poderes? O conjunto basta para fazer uma democracia?” Melhora muito, meus caros. Mas ainda não basta. Digamos — não é o caso, mas digamos! — que o Legislativo e o Executivo na Venezuela, hoje, fossem independentes. Se os três Poderes continuassem irmanados na defesa das mesmas teses ditas “bolivarianas”, esmagando a divergência, não se teria democracia. Mas lhes dou uma exemplo ainda mais óbvio.

As teocracias islâmicas, por exemplo, não podem ser democracias. Na maioria delas, há estado de direito, com respeito à vontade da maioria, e os Poderes até são independentes — dentro da independência possível. Ocorre que a religião se torna um redutor de todas as demandas, e seu valor deita sua sombra sobre a sociedade.

Escrevi a palavra-chave: VALOR. Uma democracia tem de estar assentada no estado de direito, na vontade da maioria, na separação e independência entre os Poderes e nos VALORES. Pergunto: é democrático que a maioria decida que nem todos são iguais perante a lei? É democrático que a maioria ache normal que a lei seja posta a serviço do grupo governante da hora? É democrático, para ficar nos termos do senador Cristovam, que o povo decida que não quer mais um Parlamento? Pode haver democracia islâmica, por exemplo, dado que as mulheres, sob o Islã (ou, se quiserem, sob os vários “Islãs”), não têm os mesmos direitos dos homens? "Ah, não se trata de uma questão de direitos, mas de cultura..." Pois é! Eu fico com os direitos...

A tese de que a vontade da maioria é a verdadeira força da democracia é autoritária e filoditatorial. Eu realmente acredito que alguns valores sociais e morais são patrimônios incorporados à evolução da civilização, como as vacinas por exemplo — e, a exemplo delas, nos fazem viver melhor. Eu realmente acredito que alguns valores da chamada cultura ocidental — como tolerância, respeito a minorias, igualdade perante a lei, liberdade religiosa — a fazem superior a outras realidades culturais.

Como diria Barack Hussein Obama, eu não estou em guerra com o Islã — nem com ninguém. Eu sou, isto sim, é um defensor radical, intransigente mesmo, desses valores. E, com efeito, acredito que os homens de toda a terra viveriam melhor sob o seu abrigo.

Sob este ponto de vista, reconheço meu lado quase jesuítico. Acho que os valores da democracia têm de ser espalhados pelos quatro cantos da terra. E creio que devem ser devidamente contidos aqueles que, mesmo estando entre nós, pretendem sabotá-los. Porque o regime de liberdades pode tolerar quase tudo — só não pode tolerar os intolerantes.

Houvesse um símbolo ou emblema para o regime democrático, como há para o cristianismo, por exemplo, eu não teria dúvida de nele inscrever a frase "In hoc signo vinces".

Reinaldo Azevedo. Textos de Formação - Mas o que é essa tal de democracia ? in http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/

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